sexta-feira, julho 30

No palácio do conde

 

O acaso de uma conversa com um amigo que vive em Ponte de Lima proporcionou-me anos atrás a oportunidade de desco brir que o senhor Lubbers, então primeiro-ministro holandês, passava as suas férias na vizinhança, num imponente palácio que um conde empreendedor tinha transformado em luxuo so e discreto estabelecimento hoteleiro.
Em princípio esse estabelecimento é acessível a toda a gente. Mas o conde, adaptando sabiamente as regras seculares da separação dos convívios às realidades do comércio e às contingências do tempo democrático em que vivemos, reservou para os hóspedes de marca os aposentos da sua histórica morada, e transformou os estábulos em apartamentos para o vulgo.
Devo dizer que compreendo essa separação e que por inteiro a aprovo. Quem, a troco de pagamento, ambiciona roçar a intimidade de aristocratas nos seus palácios, não merece mais que ser relegado para a estrebaria. Além disso o conde acha, e eu também aqui concordo, que os políticos eminentes têm todo o direito de, sem o incómodo da bisbilhotice do comum, dormir entre lençóis condais, gozar o conforto e o aparato do palácio, receber como nos bons tempos as provas de respeito e submissão do pessoal.
E assim, porque a política e o renome têm a desvantagem de infalivelmente obrigar a impressões, estados de espírito e contactos que nem sempre são agradáveis nem elevados, o senhor Lubbers, outros primeiros-ministros e mais gente de fama têm ido discretamente ao Minho veranear no palácio do conde. Aí, junto com as delícias da boa cozinha portuguesa e os banhos de sol, tomam uns «banhos» de aristocracia que certamente os ajudam a remover os inevitáveis salpicos de plebeísmo que, pelo ano adiante, lhes terão maculado o corpo e a alma.
Seja dito de passagem que, se me não atrai o veranear em palácios onde me estaria reservada a cavalariça, pessoalmente nada tenho contra o luxo. Bem ao contrário. A bolsa é que me impede essa extravagância.
Tendo, pois, tomado conhecimento de que o senhor Lubbers honrava com a sua presença a bela província do Minho, ao escrever mais tarde um guia de Portugal pareceu-me interessante mencionar o facto. Em má hora o fiz. Desde então o primeiro-ministro deixou de ter sossego nas suas férias portuguesas e o conde passa o melhor do seu tempo a atender os curiosos que lhe batem à porta.
De princípio julguei que as notícias que me chegavam fossem exageradas ou que, movidos por um sentimento de apreço, os holandeses de passagem decidissem desse modo exprimir ao senhor Lubbers admiração pela sua pessoa e pela sua política. Todavia, ambas as suposições se mostraram erradas, e para alguém que, como eu, julgava possuir algum conhecimento do carácter deste povo, redundaram elas em mais uma ilusão perdida. É que dos inúmeros holandeses que têm ido e continuarão a ir incomodar o conde à porta do seu palácio, são raros os que lá vão com o intuito de homenagear o primeiro-ministro. A maioria deseja apenas inteirar-se se a informação que dei é exacta e, uma vez obtida essa certeza, retorna aos seus automóveis ou às suas bicicletas com o alívio dum dever cumprido e a satisfação de ter controlado.
Se me tivesse dado conta das consequências, eu não teria desvendado com tanta leviandade o local favorito das férias do senhor Lubbers. Mas a verdade é que subestimei esse forte traço do carácter holandês, o qual impulsivamente leva a quase tudo querer controlar e conferir. Um italiano, um francês, um espanhol – para não falar dos meus próprios compatriotas – se lhes fosse dito que os seus primeiro-ministros veraneavam atrás daqueles muros, provavelmente passariam com um encolher de ombros e não lhes ocorreria entrar. Mas o holandês tem de ir verificar, tem de adquirir a certeza de que a informação é exacta.
Essa qualidade, tão digna de apreço num polícia no desempenho das suas funções, necessária num contabilista que faz as suas contas, indispensável num engenheiro, num cirurgião, é fatal no trato do dia-a-dia e a pior inimiga da fantasia, condimento essencial da vida.
Com a sua febre inata de controlar, de ver com os próprios olhos, os holandeses – não todos, evidentemente, mas muitos – nunca se deixarão convencer de que uma ilusão vale
mais que a permanente e infrutífera busca de certezas, pequenas ou grandes. Que ao fim e ao cabo há mais sabedoria em imaginar um político no esplendor de um palácio condal,
do que em querer encontrá-lo em carne e osso, vestido dos calções curtos que provavelmente veste no seu tempo livre.

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in Mazagran