quinta-feira, julho 22

"Monsieur Aznavour"

"Começou modesto, sozinho, um escritório de nada nas traseiras de um quarto andar, no Porto, Rua de Santo Ildefonso. Num ai, sem razão que se adivinhasse nem favor de patronos, mistério mesmo, foi como se tivesse recebido o toque de Midas.

Falava-se de uma viúva, falava-se da Maçonaria, cumplicidades, segredos perigosos, corrupções, contactos em Angola, de um dia para o outro  ganhou aquela fama que não é do topo, mas se sussurra entre amigos, o nome que se indica aos que precisam de um jeito com resultado garantido.

Conheceu o gosto de ser falado, depois de alguns sucessos teve o retrato  nos jornais, viram-no televisão, já o reconheciam e cumprimentavam. Raros processos levava aos tribunais, mas o seu nome começou a aparecer em querelas de contratos milionários, ligado a casos de bancos, numa ou noutra bisbilhotice do Jet Set.

Participava em colóquios, discutindo Política, Economia, a necessidade de proteger as Artes, de "valorizar o nosso Património", os antigos colegas perguntando-se onde é que aprendera o palavreado, pois aquele não era o bronco de que tinham rido na faculdade.

Não era. De Carlos Munim, o "Morcão", restava o corpo franzino e a cabeça de fuinha. Este era o Carlos Abba, o Munim Money Money, a quem se faziam  elogios e davam calorosos abraços, recordando "os bons tempos da nossa pândega", insistindo no grande respeito que mereciam as suas extraordinárias qualidades de trabalho. Para não falar do brilho social.

Do escândalo e dos dezassete meses de cadeia, diria ele, senhor de si ao ser depois entrevistado, que perder uma batalha não é perder a guerra.

Sabia-se traído, tinham abusado da sua boa-fé, os chamados bons amigos dando mostras de serem do sangue de Judas, a arrastá-lo pela lama, indo buscar casos esquecidos para mais fundo lhe fazerem a cova. Mas não esquecia, nem precisava de apontamentos, tinha tudo na cabeça: nomes,  situações, confidências, bandalheiras. A sua hora havia de chegar.

Essa hora preparava-a ele calmamente, metodicamente, desde que se exilara no Algarve cinco anos atrás. E como tinha previsto, outros casos bem maiores tinham feito esquecer o seu: o Isaltino, o Loureiro, o BPN, o Vara – que em rapaz se lembrava de ter visto ao balcão da Caixa em Mogadouro – os submarinos, as PPP…

O casamento com Marilu, filha única de pai rico  ajudara bastante, mas mais ainda o golpe de sorte do conde, que sem o conhecer o tinha escolhido para um processo contra a Câmara, e se tornara íntimo.

Fora recuperando passo a passo. Nos meios que agora  frequentava, um ou outro invejoso, baixando a voz, ainda aludiria ao percalço, mas a sua clientela aumentava, recorriam a ele atraídos pela argúcia com que se elevara, e a provada destreza em passar rasteiras à parte contrária e à lei.

Continuava a tamborilar, absorto,  já ele estava a meio da sala quando deu pela entrada do inspector.

- Viva o Super Mário! – levantou-se, efusivo, agarrando-o pelos ombros para melhor admirar. – Grande Silveira! Senta-te aí!

E sorrindo para o interfone:

- Carolina, faz favor, minha querida. Dois cafés e dois cheirinhos da velha.

A parecença é excepcional e no passado Mário Silveira foi  muitas vezes confundido com o cantor. Hoje o público tem outros ídolos, o inspector só de longe a longe tem de responder com um enfastiado "Non!" aos importunos que se aproximam, sorridentes, a perguntar: - Monsieur Aznavour?

Tal como o sósia, mesmo em boa disposição o seu rosto exprime uma indefinível melancolia, misturada de tédio e cansaço. Como se tudo lhe pesasse: a existência, o mundo, o trabalho, o interlocutor, a conversa.

Os subordinados chamam-lhe o "São Bernardo" e, de verdade, a sua postura e o quebranto dos olhos injectados levam a pensar na pachorrenta raça alpina

 Criminoso, suspeito, vizinho, subordinado, encara-os todos com o mesmo modo ausente, os cantos da boca descaídos, os dedos entrecruzados, os polegares a bater um no outro com tique nervoso. Essa morbidez, porém,  é aparência, disfarça um intelecto de excepcional capacidade de análise.

Poderia ter sido cientista brilhante, médico de renome, mas o deslumbramento  pelo submundo, os arcanos da sociedade, o mistério do que despoleta a mente do assassino, do burlão, do traficante, levaram-no para a Judiciária. É aí que, mau grado a expressão atormentada, se deixou ficar, um mistério  para os que dele esperavam ambições maiores."

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in Mentiras & Diamantes