segunda-feira, julho 19

Os cegos de Manoa

 

Nos confins da Amazónia, entre o Brasil e a Bolívia, lá onde o rio Madeira começa a ganhar maje­stade, Manoa seria o último lugar onde se esperaria encon­trar alguém como John T. Aldrich III.

Com umas cinquenta cabanas, meia dúzia de barra­cos a que chama­vam casas e o posto fron­tei­riço, onde os soldados de guarda dormitavam apoiados a fusis da guerra da Crimeia, nos fins de 1951 Manoa era o que com razão se podia chamar um fim-do- mundo.

Para oriente o barco levava dois dias a alcançar Porto Velho, outra Manoa. Para ocidente dizia-se, mas sem certeza, que ficavam umas montanhas de picos cober­tos de neve. A poucos metros de cada margem, densa a ponto de tornar o dia um crepúsculo­, a selva era um inferno húmido.

Irregular, e por isso sempre surpreendente como um milag­re, a chega­da do barco que de Porto Velho trazia mercadorias, o correio, e alguma autoridade ou viajante desgar­rado, era a maior diversão das duzentas e pico almas a quem tinha cabido o destino de que ali haveriam de nascer, de morrer, e no meio tempo multiplicar-se. E multiplicavam-se. A ponto de que quando o barco atracava e corriam todos a ver, pareciam uma multidão.

John T. chegara a Manoa com a vaga ideia de, durante um tempo, gozar ali uma forma estática e exótica de felicidade. Filho de ricos, tinha viajado, tinha visto, vivido, gozado, mas continuava a sentir na alma um indefinível vácuo e, enquan­to aguardava a reve­lação do seu verda­deiro futuro, a Amaz­ónia parecia-lhe um lugar de espera melhor que Connecticut.

Ficou. Agradava-lhe o isolamen­to do lugar e apenas o surpreen­dera o es­pectáculo dos cegos, às vezes dois, às vezes três ou quatro, que se sentavam à borda d'água e a quem os garotos molestavam aos gritos de « Ca-pa-dos! Ca-pa-­dos! »

O missionário tinha-lhe confessado que achava o costu­me bárbaro, mas conhecen­do-os de há muito, ele próprio nunca se atreve­ria a ir contra os sentimentos de honra dos seus paro­quianos. O assassinato era para as questões miú­das, as dife­renças de opinião, o castigo dum roubo. Mas homem desonrado por infide­lidade de mulher ou sem-vergonha de filha, só tinha uma saída: capar o malfeitor e arrancar-lhe os olhos. Ultima­men­te, aliás, começava a ser costume cegar também as mulheres.

Deitado na rede estendida entre os dois troncos que suportavam a choça, John T. balouçava lentamente, recordando as alucinações do peyotl que tinha experimentado no México, a suave euforia da maconha brasileira, a loucura furiosa causada pelo chinchonete seco que bebera em Barcelona.

Sentia-se intensamente feliz naquele fim da tarde, mascando folhas de coca, saboreando em golos fundos a cachaça da garrafa que Simona deixava ali à mão, na caixa ao pé da rede.

Nome pouco corrente num lugar daqueles, Simona. Tinha conheci­do uma Simone em Yale, outra em Paris, uma Simo­netta em Bari, e guardara delas deli­ciosas recordações. Mas Simona, com os seus catorze ou quinze anos a mais jovem de todas, na cama levava-lhes de longe a palma. Que corpo! Que fogo naque­les olhos negros! Ao fim de experiências sem conta, e pen­sasse cada um o que quisesse, em sua opinião o sexo era ainda a droga supe­rior.

Meteu na boca outra folha de coca, bebeu mais um golo. O missionário com as suas histórias de honor e horror! O que é que por cinco ou dez dólares se não comprava em Manoa?

Tomou-o um torpor delici­oso, voltou a acordar, bebeu outro golo, atentou vaga­mente no vulto que de pés des­calços se recortava contra a clarid­ade da porta.

- Hi! Pedrito!

Por facilidade tratava-os a todos por Pedrito. Homem ou irmão de Simona, talvez primo, não sabia ao certo. Em todo o caso parente.

John T. escorregou para o chão de terra batida e pegou na garra­fa, esten­deu-a ao visitan­te que diante dele se mantinha imóvel.

- Bebe, hombre.

Silencioso, o homem sentou-se no chão, bebeu, pousou a garrafa, e sacando da navalha passou-a lentamente pela unha do polegar, a experimentar-lhe o fio.

 

                                                           *   *   *