Logo desde as primeiras horas, os
holandeses certamente se contaram entre os mais entusiastas dos prosélitos dos
Cravos. E idem dos mais fundamentalistas. Bons eram os que, incondicionalmente,
sem reservas, cantando e rindo, abraçavam a chegada da liberdade ao martirizado
país. Quem viesse com interrogações e dúvidas, era relegado para a asquerosa
categoria dos inimigos da Revolução. Ou pior: para a dos pobres de espírito,
aqueles a quem faltava tino para compreender a beleza da aurora revolucionária,
e se mostravam incapazes de berrar em uníssono que o Sol passaria a brilhar
para todos nós.
Em ambas as categorias me encontrei eu.
Situação inconfortável na universidade, onde os fariseus eram legião. Situação
ainda pior junto da chamada imprensa da esquerda, na qual tinha colaborado e
onde, de um dia para o seguinte, me vi ostracizado, posto de lado como cão
tinhoso.
Felizmente, esses percalços não me causaram
mossa de maior, nem perturbaram demasiado o sono. Contribuiram, sim, para
agudizar o meu sentimento de não-pertença, ou aquilo que anos mais tarde, ao
escrever sobre a minha situação na Holanda, um crítico inglês descreveria como
“the seldom commodious situation of an
outsider inside.”
Compreendi, aceitei, observei, consegui
mesmo extrair algum proveito do desconforto. Assim, os jovens e menos jovens
revolucionários holandeses que partiam em bandos a ajudar a colheita de tomates
no Alentejo, ou a levar o evangelho marxista aos idosos de Trás-os-Montes,
tornaram-se-me objecto de estudo.
Certamente os havia sinceros nas convicções
e ingénuos no comportamento. Sempre os há. Mas esses eram poucos e
desinteressantes. O foco da minha atenção ia para os que berravam slogans
acompanhando-se à guitarra, os de cabelo mais longo e vestuário hippie. Esses iam animalmente para
gozar, beber, cozer a pele e a bebedeira nas areias do Algarve e arredores.
Entrementes erguiam o punho, davam abraços, debitavam alegres os hinos da
revolução e os slogans do momento: o povo é quem mais ordena, a terra a quem a
trabalha, unidos venceremos, camaradas àvante, a luta continua...
Cumprido esse dever voltavam à bebedeira, e
hoje provavelmente efabulam aos netos as andanças heróicas em que participaram
e a solidariedade que sentiram ao contacto da pobreza alheia.
Delas, as revolucionárias, guardo a
lembrança de nas soalheiras do Alentejo as ter visto de mini-saia e mamas ao
léu. A colher tomates, como tinham prometido. E até a participar nas sonolentas
reuniões em que os quadros explicavam às massas a felicidade que as aguardava.
Mas as jovens holandesas, fora o desejo de auxiliar o proletariado, traziam na
bagagem outras e bem mais generosas intenções missionárias. Os pobres campesinos, como elas gostavam de lhes
chamar, fora as privações materiais, certamente sofriam com a repressão da
Igreja. Deprivados há séculos de um comércio sexual adequado, eram eles, se não
“almas”, corpos a necessitar de salvação e satisfação.
Sobretudo no Alentejo, as jovens e menos
jovens holandesas deitaram-se a fornicar o proletariado com um entusiasmo que
deixou fama. E seja dito: trinta anos passados, ainda se encontram anciãos alentejanos que rebolam os olhos ao
recordar esse gostoso tempo.
Para as raparigas o acto era polivalente.
Num ambiente revolucionário e longe de tutelas, podiam alargar ainda mais os
limites da liberdade a que estavam habituadas. Encontravam também as
satisfações novas que dava o exotismo da situação. E, last but not least, um testemunho da cooperativa revolucionária, a
confirmar a participação em tarefas de solidariedade e desenvolvimento,
era excelente achega para o Curriculum Vitae.
Hoje, quando a televisão me mostra os
jovens que partem por quinze dias para os quatro cantos do mundo, a levar ajuda
aos deserdados e aos inválidos, já não ironizo nem julgo, sorrio."
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In A Ira de Deus sobre a Holanda – inédito.