Ouve-se, umas vezes dá para rir, outras aborrece, de quando em quando é um pequeno choque.
Estamos em conversa amena ao fim da tarde, dois idosos falando do antigamente e do que já não é. Que de facto nunca foi, mas conversa destas é menos diálogo do que convenção, a tudo digo que sim, que na verdade assim era, tudo melhor, muito melhor, abano tanto a cabeça em assentimento que me dou conta do exagero.
- Salazar faz muita falta. Quem como nós viveu nesse tempo é que sabe. Havia decência, moralidade, as pessoas respeitavam, cada um conhecia o seu lugar.
Aceno que sim, franzo os lábios, mantenho o sério de circunstância.
- E o 25 de Abril terá feito algum bem, trouxe as pensões e os subsídios, mas o que se vê na política, o venha a nós, a roubalheira!
O meu gesto repete a concordância e ela salta para os malefícios da televisão, as porcarias dos programas, as poucas-vergonhas, fosse no tempo do Salazar iam parar à cadeia.
Suspiramos ambos, olhamos em redor, tenho ideia de que como afabilidade já chega e com uma tossidela vou preparar a despedida.
Mas ela tem ainda a sua viuvez de há poucos meses. Fala, compungida, da solidão e de não ter filhos, de como lhe falta a companhia que ele era, bom, trabalhador, levava-a às feiras, de vez em quando ao Porto.
A minha atenção deve ter diminuído, porque sobressalto ao ouvi-la repetir que quase até ao fim tinham tido "vida sexual", se não fosse o ele ter começado a sofrer da "veia"...
Compreendi mal e suponho problemas de varizes, da circulação, mas ela, com uma desenvoltura que desdiz o seu antagonismo da modernidade, aponta para a minha genitália.
A veia, um neologismo.