- Era um sábio! E então de uma cultura! Quando lhe falávamos tinha-se a impressão de beber sabedoria!
É tique de que me não livro: começam eles assim e vão-se-me os olhos a fixar um ponto alto das suas testas, o que lhes dá a ideia de que continuo a encará-los e me impede de procurar distracção no tecto.
- Um grande senhor! E então de uma gentileza!
Esta achega é da cara-metade e eu, ao sentir que involuntariamente se me franzem os lábios, arrepanho-os pronto numa careta de assentimento. Há uma pausa, ele retira os óculos com um gesto largo e, como se estivéssemos os três num palco, dá deixa à senhora:
- De facto! Homem de grande valor! Uma personalidade!
Pausa de novo, esquece que vai na terceira ou quarta repetição, prossegue: - E então de uma cultura! Quando lhe falávamos tinha-se a impressão de beber sabedoria!
Ela não vai ficar atrás, aponta-nos o dedo sublinhando o superlativo:
- Personalidade fortíssima!
Isto dura há quase uma hora, chegamos ao ponto em que me vem um começo de tontura e deixo de ouvi-los, refugio-me na memória do falecido. Não era sábio, nem culto, nem gentil, mas um ser traumatizado, doentiamente hesitante, sofrendo de medos irracionais, rara sovinice e um pendor de crueldade. Todavia, neste caso e tantos outros, por certo importa menos a pessoa que fomos, do que a imagem que de nós guardam os tolos.