domingo, maio 22

O casaco de galões dourados

Chegando ao que se costuma referir como idade avançada, no meu caso passados os noventa, as memórias sofrem por vezes uma distorção. Assim acontece que quando lembro o Dino pela última vez que o encontrei, revejo sempre o estranho janota que tinha sido, pois numa aldeia onde as calças grosseiras de burel eram a norma, vestia ele umas de fazenda, que embora remendadas o distinguiam, um pouco à maneira de um inesperado homem da cidade.

Diferente era também o seu calçado, porque se todos usavam botas cardadas, a ele viam-no aos domingos e dias de festa com uns sapatos pretos, que davam nas vistas pelas pontas, afiadas à maneira de bicos de pássaro, mas mais ainda por em tempos distantes terem sido de verniz.

Como se essas bizarrias não bastassem para o distinguir, na festa do padroeiro completava ele a vestimenta domingueira com um casaco de riscas azuis, vermelhas, castanhas, brancas,  galões de borlas douradas, medalhas e sobra de pingentes. Já com muito uso, esse extraordinário casaco mandara-lho o seu único parente, um primo  que vivia na África do Sul, como testemunho de que tinha subido na vida, e folgadamente ganhava o pão a tocar numa banda de música.

O que segue ouvi-o, pois já então vivia longe, mas o testemunho é fiel. Sentindo o fim próximo, o Dino fez saber que quando fosse a enterrar, das calças ou dos sapatos não fazia questão, mas casaco teria de ser aquele, pois nunca tinha visto um mais bonito.

Faleceu, e porque já não tinha parentes dividiu-se a aldeia, uns achando que se devia respeitar a sua vontade, a outros parecendo falta de respeito aparecer assim diante do Senhor.

Ganharam estes últimos com apoio do padre Vítor, que meses depois teve um ataque e ficou entrevado. Uns diziam que era porque tinha de ser, os outros calavam-se, certos e seguros de que Deus não dorme.