sábado, fevereiro 15

Uma questão de tripas


No hospital, num enterro, em horas de choque ou grande emoção esperam-se lágrimas, mas numa conversa entre amigos em que à ligeira se salta da política para o Benfica, as multas do estacionamento,  o restaurante do “Guadramil”, e de súbito ver o Antero de olhos marejados a fungar no lenço, abanando a cabeça que não é nada, causa um misto de espanto e incómodo, leva a supor o pior, doença grave, problemas de dinheiro, coisas assim.
Ficámos à espera que explicasse, mas também incomodados, porque ele costuma ter saídas que nunca se sabe se é a sério ou a gozar connosco. Desta vez, contudo, dividiram-se as opiniões, uns a dar-lhe razão, outros dizendo que esquecesse, embora concordássemos que nunca deve ter sido tão estranho como agora o fosso que separa a juventude da velhice.
Desde que enviuvou almoça aos domingos em casa do filho e tinha-se lembrado de procurar umas fotografias dos anos setenta para mostrar à neta como eram os costumes da aldeia. A maioria a cores tinha juntado umas trinta, a burra com os cântaros da água, as mulheres a lavar na ribeira, a matança do porco, as malhadas, as procissões. Bons tempos, felizmente passados, que aquilo não era vida.
Com doze anos a Daniela é uma garota espevitada, boa cabeça e, como pertence na sua idade, assustada com a poluição, o aquecimento do planeta, os plásticos, o desinteresse da família pelo que a Greta prega, mas carinhosa também, quando o avô a chamou foi sentar-se ao seu lado e sim, claro, gostava de ver as fotografias, se calhar podia usar algumas para um trabalho da escola.
Conta ele que teriam visto umas seis ou sete quando chegaram às da matança e numa a cores estava o porco cortado de cima abaixo, as entranhas à mostra, o Pêgas de faca na mão, ele próprio a fingir que acariciava o focinho do animal.
Surdo e distraído ia na terceira fotografia da matança, a contar que se fazia assim e assado quando deu conta de que estava só. Esperou, a miúda devia ter ido ao quarto de banho, continuou à espera já aborrecido, e poderia ter imaginado tudo menos o ar de ameaça com que o filho e a nora entraram a pedir explicações do que se passara, que fotografias eram aquelas, que tinha acontecido para deixar a pequena em choque. E desculpasse, mas era melhor ir embora.
Desde então não falam nem os tornou a ver, soube pelo filho do Tavares que no Facebook a Daniela tem muitos likes, conta lá que não perdoa terem-lhe escondido que o avó era um sádico que até se ria quando cortava as tripas aos animais.