sábado, dezembro 14

As "pírulas" do Valentim

Quem vive na cidade tem por vezes curiosas ideias sobre os meios pequenos, imagina nas vilas e aldeias uma grande intimidade, aquelas conversas com tempo de sobra, um vaivém de visitas e portas abertas. Talvez noutras terras assim seja, mas cá na vila mesmo entre parentes e amigos nota-se um certo retraimento, se se lhes bate à porta com um recado o convite para entrar as mais das vezes é pró-forma, ou então fingem pressas, atabalhoando desculpas.
Na semana passada a meio da tarde fui ao Correio para levantar um registo, mas pelos jeitos era o dia dos vales e ao ver aquela fila desisti, fiquei no passeio a hesitar se ia até ao café ou voltava para casa. Foi então que vi o Alfredo acenar-me da porta da farmácia para que lá fosse, e atravessei a rua perguntando-me se teria havido outra vez engano com a receita.
Felizmente não havia, o Valentim é que se tinha esquecido dos comprimidos e não atendia o telefone, ora como eu morava perto…
Por alcunha “O Marmeleiro”, o Valentim abriu a porta, a cara de incomodado logo virada para o cordial, e contra o costume fizesse o favor de entrar, agarrando-me pelo braço não fosse eu desistir.
Agradeceu, puxou uma cadeira para que me sentasse, e já agora que estava ali de certeza não ia dizer não a um cafezinho que ele fazia como antigamente numa cafeteira e era especial, mandava-lho o irmão que vivia em Amboim.
Falámos disto e daquilo, dos nossos achaques, das “pírulas” – o seu sorriso a marcar a ironia – que tomava para ter algum descanso, pois embora só faltassem três meses para cumprir cinquenta anos que voltara de Angola, as memórias da guerra não lhe davam trégua nem paz, muitas noites era como se ainda lá estivesse, sentia os mesmos medos, ouvia os gritos, os estrondos, acordava do pesadelo encharcado em suor.
- Uma noite da semana passada comecei aos gritos, julgava que ia atirar uma granada e afinal tinha adormecido com o telemóvel na mão! Enfim…
Deixou de me encarar, como se hesitasse no que ia dizer ou temesse a minha reacção, a sua voz pouco mais do que um sussurro:
- Só quem  esteve metido naquilo é que sabe, é que pode dizer. Tenho horas em que se fizesse o que me passa pela cabeça nem sei o que aconteceria. Vou tomando as “pírulas” às duas e três, o doutor diz que é um perigo, mas estou-me nas tintas, se morrer morri. Agora como as coisas andam palavra que não sei. Um destes dias vêm eles por aí acima, tomam conta disto tudo. Sabe que já não se pode dizer que os gajos são pretos? Então que são?