quarta-feira, outubro 20

Bucolismo


Em miúdo acreditava, comecei depois a desconfiar e desde então a minha surpresa aumenta quando oiço ou leio o desfiar sobre as coisas pastoris e boas da vida da aldeia. O solzinho, o ar puro; o ti Alberto que aos noventa todos os dias cava a horta; a Gervásia que faz alheiras à moda antiga; o forno de lenha onde a Laura e a irmã cozem pães de centeio, grandes como rodas de carro, iguaizinhos aos das nossas avós; a rapaziada de calças arregaçadas na pisa das uvas.
Babam-se jornais e revistas a acentuar a "autenticidade" deste viver, pergunta a televisão a gerontes surdos se lhes agradaria a vida fora daqui; aparecem uns jipes de mirones citadinos a fotografar isto, aquilo, e acham "muito típicos" os casebres arruinados, a fonte velha, as pedras do lagar, aquele castanheiro.
A aldeia? Ó senhores, deixem-se de histórias, não nos incomodem nem venham acordar a sonolência a que nos obrigamos para nos podermos aguentar uns aos outros. Dando-nos os bons-dias, conversando à esquina sobre o tempo, a amêndoa e a carestia, enquanto esperamos o camião do padeiro. Sorrindo e batendo nas costas do filho da puta que à noite empurra o contentor do lixo para a nossa parede. Sorrindo ao filho da puta que com ácido queimou as raízes da oliveira que lhe  sombreava o quintal. Sorrindo ao filho da puta que desvia a água da rega. Sorrindo. Sorrindo. Sorrindo e falando manso à grandessíssima que manda o filho mijar à nossa porta, porque a incomoda o ladrar do cão.
Sorrindo e sabendo uns dos outros que não há casa sem pistola.