quinta-feira, janeiro 2

Os medos de então

 

Na minha infância o sobrenatural ainda existia e amedrontava. Ocorriam aparições. Os jornais relatavam milagres, publicavam o retrato de faquires enterrados vivos durante trinta e seis dias, e  estigmatizados que sabiam a data do fim do mundo. Nesse tempo o Diabo mortificava os que com ele tinham pactuado, e a água de certas fontes curava a cegueira, o reumatismo, limpava o sangue - se bebida em jejum - corrigia os adúlteros.

Havia vizinhos que tinham sido salvos de despenha­deiros por anjos de faces radiantes. Na escuridão de algumas noites ressoavam os gritos das almas penadas, tão dolorosos e cheios de mistério que levavam os cães a uivar e as pessoas a benzer-se. Apareciam no céu clarões vermelhos que, diziam os anciãos, prenunciavam as labaredas do inferno.

O mundo era maior do que hoje. Na África, no Pólo Norte e junto das crateras dos vulcões, havia monstros que comiam gente. A professora assustava-nos sem querer, dizendo que na China viviam 400 milhões de chineses, esfomeados e rabiosos - ele escrevia um 4 e enchia o resto do quadro com zeros - se o globo terrestre parasse de rodar ou mudasse de inclinação - "Mesmo só um poucochinho, um décimo de grau!" - cairíamos todos para cima!

 

Longe de tudo, ligada ao mundo por um caminho estreito e acidentado, perdida numa serra onde só raramente se aventuravam os tendeiros e os pedintes, a aldeia era desolada. Sobretudo no Inverno, quando escurecia cedo e as noites pareciam infindas. As mulheres e as crianças ficavam ao serão, os homens iam para a taberna jogar, emborrachavam-se lentamente, aquecidos pela lareira e pelo vinho, excitados pelas histórias dos medos antigos, falando dos negócios fabulosos com que os ciganos enriqueciam.

Alguns recordavam os anos da tropa, o temor de embarcarem pela primeira vez no comboio - que realmente ia mais depressa do que um cavalo a galope. E falavam da caça, das colheitas, das feiras de ano, da doença que podia matar as cabras.

Ao tocar das trindades bebiam mais um copo, davam as boas-noites e saíam aos bordos, ouvia-se na calçada o eco dos passos incertos. Os rapazes ficavam até mais tarde. Alguns dormitavam nos escanos, embrulhados em capas alentejanas, e o taberneiro deixava-lhes a porta aberta. Outros jogavam a dinheiro, batendo as cartas na mesa, fazendo questão de pagar a rodada quando perdiam, para que ninguém os julgasse mesquinhos ou avarentos. Inventavam apostas absurdas. "Aquele que perder vai daqui ao Cabeço com um saco de batatas às costas." Eram quatro horas de caminho de monte, a subir e a descer, os sessenta quilos do saco meia carga de uma besta. "Quem perder faz uma declaração de amor à irmã do padre!" Caíam de riso. A Mariazinha era velha, desdentada e simples de espírito, quando lhe davam os ataques saía para a rua a dançar, dizendo que estava noiva de Cristo.

Uma vez tinham apostado com o Teodoro dez litros de vinho em como ele não seria capaz de entrar no cemitério à meia-noite.

- Não sou? Quem diz que não sou?

- Não és. Borras-te de medo.

- Não sou? Eu? Aposto vinte litros!

- Trinta!

- E eu um barril de cinquenta!

Apertaram-se as mãos a firmar o trato e depositaram o dinheiro do vinho com o taberneiro. Depois alguém se lembrou de dizer que não valia uma noite qualquer, só se fizesse bem escuro.

Teodoro encolheu os ombros, desinteressado e valentão. Escolhessem. Pouco lhe importava.

- Até pode ser sexta-feira e dia treze - acrescentou a rir.

             

Na noite combinada, enquanto alguns lhe faziam companhia na taberna, à espera da hora, os outros tinham arranjado uma abóbora do tamanho de uma cabeça. Esvaziaram-lhe o miolo, recortaram-lhe dois olhos, uma boca, espetaram-na numa cruz e cobriram a cruz com um lençol. Aquilo já de si tinha um ar sinistro, mas quando colocaram uma vela acesa dentro da "cabeça" e a levaram para o cemitério, eles próprios sentiram calafrios e deitaram a correr.

O taberneiro tirou o relógio do bolso do colete:

- Faltam cinco.

- Então vou indo.

- Não é só entrar e sair, hein? Tens de lá ficar um bocado.

- Pois sim.

Mas nem tempo teve de passar a porta. O regedor vinha a entrar acompanhado do cabo-de-ordens, que trazia ao ombro a cruz com a abóbora e o lençol.

Pôs-se a encará-los um por um, em silêncio, eles de olhos baixos, o taberneiro ocupado a lavar os copos. Olhou-os outra vez, a ver se alguém se atrevia a disputar-lhe a autoridade. E depois, furioso, sacudindo os braços:

- Com os mortos não se brinca! Comigo não se brinca! O primeiro que apanho a fazer gracinhas no cemitério atiro com ele p'rá cadeia!

E esquecido do cabo-de-ordens, que continuava a segurar a avantesma, deu uma reviravolta brusca, fazendo tremeluzir a chama das candeias.

Juntaram-se a discutir a sem-razão do despropósito. Parecia o Salazar. Só ele é que mandava, sempre a meter medo, a ameaçar com a Guarda. Se continuasse assim, ainda um dia era capaz de lhe acontecer alguma. Porque não estava certo. Um regedor fazia cumprir os editais, passava certidões e atestados, escrevia os assentos, não tinha que se meter nas brincadeiras da rapaziada. Era ou não era? Além disso o cemitério pertencia a todos e para respeito aos mortos não precisavam das lições dele. Das de ninguém.

O taberneiro quis devolver o dinheiro da aposta, mas disseram-lhe que o guardasse. Ficava para outra altura. O regedor podia julgar que mandava ou metia medo, mas o que ele não sabia era que se eles quisessem, se quisessem mesmo, hein?...

Desataram às gargalhadas, trocando olhares entendidos. Depois, numa maluqueira, uma abraçado à abóbora, onde a vela ainda ardia, outro com a cruz às costas, um terceiro embrulhado no lençol, e os mais aos uivos, às patadas, aos saltos, armaram ali uma dança, até que por fim o taberneiro os mandou parar, por causa dos vizinhos.

Veio uma última rodada, bebida de um golo porque se fazia tarde, e os homens foram-se despedindo. Os rapazes ficaram mais um pouco, como sempre, falando baixo, a aquecer-se ao resto do lume.

 

Como então não havia estrada nem telefone, os que tinham ido a cavalo buscar a Guarda e o médico só voltaram com eles ao fim da tarde. O choro e os gritos redobraram, ecoavam longe deformados pelo vento, e as pessoas, desorientadas, passavam sem levantar os olhos, mortificadas de que na aldeia pudesse acontecer uma desgraça assim.

Nessa manhã, ao entrarmos na escola, a professora tinha-nos mandado ficar em pé e rezar em voz alta um Padre-Nosso e três Avés. Depois, com mau modo, disse que não havia lição. Fôssemos ver. Servia-nos de exemplo e talvez aprendêssemos a respeitar as coisas sagradas.

 

A gente enchera o cemitério, a família perto dos mortos, os outros mais retirados a carpir e a chorar. O Teodoro, cara arroxeada, a língua de fora e a capa enrodilhada nas pernas, estava caído de lado sobre a campa do senhor Nunes, falecido dois meses antes, em Novembro. O Daniel, também roxo, de barriga para o ar, morrera agarrado ao companheiro.

Ficámos ali aterrados, sem compreender, fascinados com a realidade da morte, lembro-me de ter achado estranho que a professora considerasse aquilo um exemplo. Depois, quando o médico se agachou para examinar os cadáveres, os guardas mandaram sair toda a gente e não vimos mais nada. O enterro de ambos foi no dia seguinte.

 

A história começou então a ser contada aos serões, cada vez mais horrível, a ponto que ao fim de um mês havia quem fosse capaz de jurar em tribunal ter visto o senhor Nunes levantar-se da campa vestido de preto e, com a bengala, acertar no Teodoro uma bordoada fatal. Aos que duvidavam, dizendo que ninguém tinha visto sinal de bordoada nenhuma, as testemunhas respondiam que era sabido, pancadas de fantasma matavam sem deixar rasto.

Na versão de minha avó a participação do sobrenatural era mais modesta e os detalhes ouvira-os ela à cunhada do irmão do taberneiro. Mais coisa menos coisa, era o mesmo que o sargento Cardoso, fechado na secretaria do quartel, para que ninguém o incomodasse, tinha escrito nas cinco folhas do auto.

 

- Com os espíritos... pelo sinal da santa cruz... não se brinca... livre-nos Deus Nosso Senhor dos nossos inimigos... porque os mistérios... - a avó conversava ao mesmo tempo que se benzia e continuava o terço, a família sentada em volta da braseira, eu agarrado aos joelhos por causa do tremelique.

 

O taberneiro não fora capaz de se lembrar exactamente da hora, mas era mais tarde do que de costume quando os rapazes saíram para a rua e ele apagou o lume e trancou a porta. Fazia frio, sim senhor. E muito escuro. Não senhor, não tinha visto nada, já estava deitado quando o Zé da Zeferina, espavorido, lhe foi pedir que acudisse. Enfiou as calças e vestiu a samarra, pegou na caçadeira, mas o rapaz pediu-lhe que a não levasse, já chegava de desgraças.

- Pai nosso que estais no céu... Tira o gato daí. O da Zeferina ninguém o torna a ver... Santificado seja o vosso nome... Meter-se ao monte por uma noite daquelas... Venha a nós... Lá dormeceu nalgum buraco e os lobos... Venha a nós... Pára com o tremelique, rapaz!... Venha a nós o vosso reino...

Ao entrar no cemitério o taberneiro teve de ir às apalpadel­as como um cego. Só depois é que distinguiu os vultos e nesse momento o rapaz quis escapar, mas ele agarrou-o e fê-lo ir adiante.

- Não me obrigue, ti Teixeira! Olhe que morro! Olhe que morremos ambos! Os espíritos não nos deixam sair daqui!

Mandou-lhe uma punhada para que acalmasse e o Zé foi-se abaixo, a chorar como uma criança. Mas por mais que lhe falasse e o envergonhasse - "Sempre me saíste um maricas!" - força nenhuma o obrigaria a mais um passo. Nem para trás, nem para diante, pregado ao chão.

O taberneiro não lhe largava o braço e por um instante desconfiou que poderia ser peça que lhe queriam pregar, aquele a fingir que tremia e que chorava, os dois marmanjos deitados em cima da campa do Nunes, os outros com certeza a gozarem a cena escondidos nalgum canto. E então zangou-se. Que dissesse já o que era aquilo, porque não estava para graças. Ao mesmo tempo apertou-lhe o pescoço dum jeito que o rapaz caiu de joelhos, certamente lembrado que o taberneiro tinha fama de mau e numa feira quebrara a pontapé as costelas de um carteirista.

 

Ele, o Teodoro e o Daniel, tinham caminhado juntos para casa, ainda a falar da aposta e do regedor. Não sabia como tinha sido, mas o Daniel, assim sem mais nem menos, disse que dava cem mil réis ao que fosse homem de àquela hora entrar sozinho no cemitério.

- Cem mil réis? Eu por cinquenta entro lá e ainda por cima espeto um pau numa campa! - ofereceu o Teodoro.

- Não espetas.

- Ó se espeto!

Aquilo tinha sido só por falar, basófia, não esperavam que ele de repente parasse, teimoso e meio bêbedo, a dizer que queria o dinheiro ali já. Iam ver se era o regedor quem mandava, ou se ele não fazia o que muito bem entendia e quando entendia.

- Da cá a nota. Quem não quer não aposta.

 

À porta do ferrador encontraram um fueiro e, ajudando-se uns aos outros, saltaram o muro do cemitério, indecisos para que lado ir.

- Qual campa?

- Escolhe tu. Qualquer me serve.

Daniel escolheu a do senhor Nunes, porque a terra ainda não tinha endurecido e o Teodoro, curvado para fazer mais força, encheu o peito de ar e espetou o fueiro até meio.

- Aí está! Quereis mais fundo?

Antes de poderem responder ouviram o som oco do fueiro contra o caixão.

- Vinde ver.

Os outros recuaram apavorados e então aconteceu:  Teodoro quis-se endireitar, mas não foi capaz, estava preso à campa e desatou numa aflição:

- Acudi! Tirai-me daqui! Tirai-me daqui!

Os gritos não lhe saíam da boca, parecia que vinham do fundo da cova, e o Zé viu então uma mão branca aparecer no meio deles, ao mesmo tempo que o Teodoro caía redondo, agarrado ao Daniel, ficando ambos a estrebuchar.

O taberneiro tinha escutado em silêncio, abanando a cabeça, e abaixou-se para tocar nos corpos, não para se certificar que estavam mortos, antes num gesto de pena, duas vidas acabadas assim, uns rapazes pimpões, cheios de alegria. Foi nesse momento que o Zé da Zeferina dum salto desapareceu no escuro e nunca ninguém o tornou a ver.

 

O tenente apagou o cigarro no cinzeiro e com um gesto fatigado esfregou os olhos. Tinha acabado de ler. Depois, lentamente, escolheu um lápis vermelho e começou a pôr um traço aqui, outro ali, até que numa irritação súbita riscou as páginas todas, entregando-as ao sargento que continuava em sentido do outro lado da mesa:

- Isto está uma merda, Cardoso! Cheio de erros! Eu não posso mandar um auto destes ao nosso comandante! O rapaz não viu uma mão branca! Julgou que viu, Cardoso!

- Sim senhor, meu tenente.

- E você esqueceu-se de mencionar as circunstâncias do falecimento.

- Estão aí, meu tenente. O doutor...

- Onde? Não está nada! O doutor disse que foram ataques do coração. Correcto.

- Foi isso que escrevi, meu tenente.

- Mas as circunstâncias, Cardoso! Não falo das causas!

- As circunstâncias... Ora as circunstâncias...

- Precisamente. É isso que falta. Quando o rapaz se debruçou para espetar o fueiro na campa espetou também a própria capa, ficou preso a ela e agarrou-se ao outro. Morreram ambos de susto, porque estava escuro. Numa noite de lua viam logo do que se tratava.

- Sim senhor, meu tenente.

- Escreva tudo outra vez. E com menos erros.