sexta-feira, janeiro 3

A Bélgica

 

Porque do convívio nasce a imitação, é inevitável que eu, português com cinquenta e tantos anos de Países Baixos, partilhe algumas das noções, clichés e atitudes protectoras que os holandeses possuem e adoptam em relação aos belgas. Mas ao mesmo tempo que vivo ofuscado pelas grandes coisas holandesas - que vão, como se sabe, do esplêndido queijo ao génio de Van Gogh, e da luta contra o mar até à segurança dos seus bancos e a variedade das suas flores - guardo no coração uma nostalgia secreta pelo que, num passado longínquo e por acaso, me foi dado aperceber dos belgas, e me pareceu então uma maneira particular de encarar a vida. Talvez que um dia, rememorando e arranjando a mistura caótica de impressões e peripécias desse tempo, eu descubra aí material para uma novela.

Todavia, antes de deitar mão a semelhante empreendimento, terei pelo menos dois obstáculos a vencer, os quais, embora diferentes, contribuem para que o conhecimento que tenho da Bélgica e dos seus habitantes não seja isento de preconceitos.

Ao primeiro desses obstáculos já aludi acima: não se vive impunemente exposto durante três décadas à visão holandesa do reino da cerveja, do mexilhão e da batata frita. E se as anedotas que os holandeses atribuem aos seus vizinhos, não se comparam em refinamento venenoso às que os brasileiros debitam sobre os portugueses, elas bastam para a criação de dúvidas e suspeitas.

O que sei da Bélgica não passa, de facto, de impressões em segunda mão, paisagens enxergadas através duns óculos (holandeses) de empréstimo. Assim, involuntariamente, se torna difícil o primeiro contacto. Olha-se com desconfiança o gendarme, não se toma a sério o dinamismo de Antuérpia, julga-se ser Bruxelas aquilo que ela só parcialmente é: a capital de uma das menos úteis actividades humanas, a burocracia europeia.

Felizmente, no eldorado de televisão e turismo em que vivemos, mais fascinados pelos países dos outros que pelo nosso próprio, nenhum desses preconceitos resistirá ainda muito tempo. Não deve demorar o dia em que a compreensão das anedotas sobre os belgas necessite notas de rodapé, e a reputação dos bancos holandeses se não diferencie da dos seus concorrentes. Desse modo nos iremos tornando mais semelhantes uns ao outros, mais cinzentos, mas também mais inclinados a desculpar e compreender.

O segundo obstáculo para escrever sobre os belgas existe somente na minha imaginação, motivo que o tornará mais duro de vencer. As suas raízes enterram-se impressões longínquas. É a minha imagem da Bélgica nos anos da infância: a dos folhetos sobre um Congo cheio de leprosos, missionários barbudos descendo em Lisboa dos paquete da África, as primeiras leituras de Maeterlinck, os romances sombrios de Van der Meersch. É, no liceu, a voz dramática do professor, contando que as relações entre Portugal e a Flandres eram tão remotas, que um documento de 1194 narrava o naufrágio de um navio de Lisboa que se dirigia a Bruges carregado de madeira, melaço e azeite. Que aí e em Antuérpia já nesse tempo existiam, e continuariam a existir durante séculos, "nações" portuguesas, conceito que ele se não deu ao trabalho de explicar e deixou em mim uma desconfiança que só muito tarde veio a desaparecer, quando descobri a palavra "natie" no telhado de um entreposto de Antuérpia.

É também a recordação dos homens emaciados e precocemente velhos que tinham lutado na guerra de 14-18, caminhando devagar nos jardins públicos, atacados duma tosse assustadora: os "gaseados da Flandres", como lhes chamava o povo . Para mim, criança, a Flandres era então um lugar de morte. Mas quando por lá passei a primeira vez, o lugar não correspondia ao nome: não vi ruínas, em parte nenhuma encontrei trincheiras ou destroços.

Assim, por estranho paradoxo, a Bélgica é um país que primeiro, e em grande parte, aprendi a conhecer nos livros e por ouvir dizer. Depois, quando finalmente o visitei, já de tal modo se me tinha deformado a visão que esse conhecimento - a minha "realidade belga" - nem na aparência corresponde ao original. Por tais razões e outras menores, a Bélgica resta para mim incógnita, longínqua e nostálgica como a Manchúria. Talvez só no dia em que escrever sobre ela, eu consiga rasgar o nevoeiro que entre nós se interpõe, e fazer com a minha ficção o exorcismo da sua realidade.