Um ano findo, outro começado, nada adianta que nos queiram convencer que os dias são mais curtos, pois se de verdade diminuem neles as horas de luz, assusta o multiplicar das que são de negrume e nostalgia, chamando temores insuspeitos, a remoer memórias que se supunham defuntas e enterradas.
Esqueceram-se já os votos de Boas-Festas mandados e recebidos, os postais ilustrados de um carinho de artifício, mais apreciados pelo que devem ter custado, do que pelas sempre idênticas e já cansadas frases, debitadas num estilo que, de tão usado e abusado, se mostra ineficaz no propósito, vira do avesso as boas intenções, muda por vezes em escárnio o que deveria ser gratidão
Sabemo-lo todos, que mútua e universalmente nos iludimos, a pendular entre a criancice e o faz-de-conta, eternos fingidores, cansados de pôr a máscara e logo a seguir tirá-la, cansados de nós próprios, do semelhante que ora nos faz sombra, empurra, passa rasteiras, barra o caminho.
É de evidente mau gosto, e gratuita crueldade, este começar o ano com semelhante perspectiva, tanto mais que pelo mesmo preço, e mais carinhosas consequências, se pode exprimir o contrário, seguindo a tática eficiente e sempre certa de agradar ao freguês, ao amigo, ao patrao, à cara-metade.
Todavia, usando esse modo resta o busílis: diz-se franca e abertamente o que vai na cabeça e no coração, ou segue-se o caminho fácil do agrado e das boas maneiras da cortesia?
Na realidade tudo são horas e humores. Umas vezes por cansaço, noutras porque a digestão foi má e o estômago azedou, mas sobretudo pelo desânimo de nos querermos diferentes, melhores, e nos sentirmos algemados ao destino que nos coube.