quinta-feira, agosto 12

Lisboa vista da Graça

 

"Voltei a Lisboa e ao Chiado dois anos mais tarde, para a tropa. O meu quartel era na Graça, um antigo convento, aquele prédio desmedidamente longo que se estende por sobre o monte, ao lado do Castelo de São Jorge. Esplêndida vista sobre a cidade. Anos de rebeldia, de raiva impotente contra um Portugal que não mudava e ninguém parecia de facto querer mudar. Os escritores, as condessas, os banqueiros continuavam como sempre, mas para mim tinham perdido o brilho, e as demi-mondaines, afinal, não eram mais que putas de luxo.
Os «poetas malditos», esses, passaram a enfurecer-me, por lhes interessar tanto o diminuto mundo da sua estética e dos seus complicados amores, e tão pouco a sociedade que em torno deles apodrecia.
Tudo isso, mas nessa altura estava ainda longe de sabê--lo, era uma seriedade de circunstância, num mundo vasto, de tantas e tão atraentes facetas que se tornava impossível seguir nele um só caminho. Assim era eu durante o dia o militar disciplinado, obediente ao regulamento, e de noite o «revolucionário» com encontros secretos, palavras de passe, longas horas na Brasileira à espera do «contacto».
De tarde subia o Chiado a cavalo, de espada, luvas brancas, alamares, seguido pelo ordenança também a cavalo, levando com pompa antiga o correio a casa do general. Mas as noites passava-as a ouvir homens emaciados, precocemente gastos, falar de um paraíso que eles não tinham visto, mas sabiam existir – é sempre assim com as religiões – onde a igualdade reinava, o amor era livre e Josef Stalin, divindade boa e justa, pessoalmente garantia o bem-estar de todos.
Essa fase durou até um novo amor entrar na minha vida e nenhum general ou ideologia tinha então força suficiente contra os feitiços de Kyra, loira radiosa vinda da longínqua e misteriosa Noruega – com semelhantes hipérboles pensava e escrevia eu nesse tempo.
No dia em que a conheci logo o regulamento me pareceu medieval, a ortodoxia do partido uma aberração. Movendo cunhas e declarando-me inapto para continuar a ser correio-montado sem perigo para o trânsito e para a vida alheia, consegui que me transferissem para a repartição encarregada de classificar a vasta biblioteca napoleónica adquirida pelo Exército, onde o trabalho acabava às cinco.
Romântico sem cura, comprei no Chiado uma guitarra, e o resto das noites desse ano de vida militar passei-as no Bairro Alto, iniciando Kyra nos mistérios do fado e nas subtilezas
da língua portuguesa."