"Voltei a Lisboa e ao Chiado dois anos mais
tarde, para a tropa. O meu quartel era na Graça, um antigo convento, aquele
prédio desmedidamente longo que se estende por sobre o monte, ao lado do
Castelo de São Jorge. Esplêndida vista sobre a cidade. Anos de rebeldia, de
raiva impotente contra um Portugal que não mudava e ninguém parecia de facto
querer mudar. Os escritores, as condessas, os banqueiros continuavam como
sempre, mas para mim tinham perdido o brilho, e as demi-mondaines,
afinal, não eram mais que putas de luxo.
Os «poetas malditos», esses, passaram a enfurecer-me, por lhes interessar tanto
o diminuto mundo da sua estética e dos seus complicados amores, e tão pouco a
sociedade que em torno deles apodrecia.
Tudo isso, mas nessa altura estava ainda longe de sabê--lo, era uma seriedade
de circunstância, num mundo vasto, de tantas e tão atraentes facetas que se
tornava impossível seguir nele um só caminho. Assim era eu durante o dia o
militar disciplinado, obediente ao regulamento, e de noite o «revolucionário»
com encontros secretos, palavras de passe, longas horas na Brasileira à espera
do «contacto».
De tarde subia o Chiado a cavalo, de espada, luvas brancas, alamares, seguido
pelo ordenança também a cavalo, levando com pompa antiga o correio a casa do
general. Mas as noites passava-as a ouvir homens emaciados, precocemente gastos,
falar de um paraíso que eles não tinham visto, mas sabiam existir – é sempre
assim com as religiões – onde a igualdade reinava, o amor era livre e Josef
Stalin, divindade boa e justa, pessoalmente garantia o bem-estar de todos.
Essa fase durou até um novo amor entrar na minha vida e nenhum general ou
ideologia tinha então força suficiente contra os feitiços de Kyra, loira
radiosa vinda da longínqua e misteriosa Noruega – com semelhantes hipérboles
pensava e escrevia eu nesse tempo.
No dia em que a conheci logo o regulamento me pareceu medieval, a ortodoxia do
partido uma aberração. Movendo cunhas e declarando-me inapto para continuar a
ser correio-montado sem perigo para o trânsito e para a vida alheia, consegui
que me transferissem para a repartição encarregada de classificar a vasta
biblioteca napoleónica adquirida pelo Exército, onde o trabalho acabava às
cinco.
Romântico sem cura, comprei no Chiado uma guitarra, e o resto das noites desse
ano de vida militar passei-as no Bairro Alto, iniciando Kyra nos mistérios do
fado e nas subtilezas
da língua portuguesa."