quarta-feira, agosto 11

A descoberta de Lisboa

 

"Primeiro as recordações. No Verão dos meus dezassete anos, pouco antes de acabarem as aulas, recebi dois golpes duros: com uma carta de seis linhas, Teresa – a das tranças negras e olhos verdes– findava a paixão que nos queimava desde a Páscoa, e no dia seguinte, no parque, descobri-a abraçada a um brutamontes que jogava basquetebol e estudava Medicina.
Traição dessas só deixava um caminho: fugir para longe e refazer a minha vida nos braços de outra – de preferência também com olhos verdes e tranças negras.
Remoendo planos de vingança futura, comecei a juntar em segredo o que me parecia indispensável para uma expedição longínqua e definitiva. Os meus pais, porém, misteriosamente ao corrente dos meus amores infelizes, e mais que satisfeitos
com o meu excelente exame, concordaram que eu «fugisse», recomendando mesmo Lisboa como o lugar ideal para arejar a tristeza, fazer novas amizades e descobrir um mundo maior.
Os comboios do norte paravam então na estação do Rossio, no centro a cidade, e aí cheguei às seis da manhã de um domingo de Julho de 1947. A primeira impressão foi de grande estranheza. Os poucos passageiros desse comboio nocturno e barato, que levara catorze horas para fazer trezentos e poucos quilómetros, pareceram desaparecer como por mágica. Para o lado da Avenida e no Rossio não se via vivalma. Nenhum carro, nenhum eléctrico. Fui até ao meio da praça e descobri, parados junto da estátua de D. Pedro, rindo às gargalhadas, três soldados que tinham viajado no mesmo vagão: dois de farda limpa e espingarda ao ombro, o terceiro algemado entre eles, a farda esfarrapada.
Do resto da manhã pouco me lembro. De começo instalei-me na Pensão Tivoli, hoje hotel de luxo, e aluguei depois um quarto na Praça da Alegria. Por essa altura já a tristeza me abandonara, e das raras vezes que a imagem da Teresa apareceu
a mortificar-me, lembro-me de ter cuspido vigorosamente para o chão o meu ódio dela e o mau gosto dos primeiros cigarros.
Nessa primeira tarde, insaciável de agitação e ruído, descia a avenida pelo lado direito, fui espreitar os teatros e cafés do Parque Mayer, passei os Restauradores e segui até ao Rossio, que logo me pareceu familiar. Depois hesitei um momento à entrada da Rua do Ouro, sabendo que o Terreiro do Paço e o rio ficavam ao fundo. Mas a escolha de há muito estava feita. Antes de virar para a direita e subir o Chiado, parei um instante, acendi outro cigarro, a dar tempo para acalmar dentro de mim o sentimento de solenidade e a emoção que me tomava.
Nos jornais e em todos os livros de Eça – o maior dos nossos romancistas, nessa altura para mim um deus e hoje ainda de longe o meu favorito – o Chiado resplandecia, era único.
A burocracia municipal, pobre de fantasia, tinha-o dividido em Rua do Carmo e Rua Garrett, mas isso eram apenas placas nas esquinas, nomes de circunstância a recordar um convento e um dândi.
Mais que um seguimento de ruas, cafés, livrarias, casas de modas, joalheiros e salões de chá, o Chiado tinha o ambiente magnífico de um fórum da antiguidade.
Realizavam-se nele harmonias secretas, era simultaneamente lugar de dinheiro, de injustiças, beleza, intelecto, de poderes bons e maus, de esbirros e poetas. A Ópera ficava quase paredes meias com as câmaras de tortura da PIDE. Os grandes burgueses, os aristocratas e os políticos, almoçavam no Grémio Literário, fundado em 1846, e depois, de charuto aceso, iam ali ao lado à Bertrand ou à Sá da Costa, trocar impressões com os escritores. Num grande desdém mútuo, é certo, mas com maneiras impecáveis de um refinamento quase  oriental.

Na Benard, no Baltresqui, na Ferrari «Casa Fundada em 846, Almoços à Lista e Chá Elegante às 5 da Tarde», anunciava a tabuleta – as condessas, as actrizes e aquelas mulheres a que os romances chamavam demi-mondaines (nenhum dos
meus dicionários dava o significado) passavam horas a debicar manjares delicados, beberricando chá e copinhos de porto.
A Casa Havaneza e A Brasileira não eram apenas uma tabacaria e um café, mas dois pontos vitais da cidade e do país: aí, entre dois charutos ou dois cafés, faziam-se e desfaziam-se reputações, governos, negócios e promessas.
O Joalheiro Brandão tinha no Chiado um estabelecimento onde se forneciam os reis. O Chiado tinha visto passar os grandes da poesia: Bocage, o maior do seu século; Gomes Leal, um génio igual a Camões; Pessoa; António Botto. Com excepção de Bocage, «poetas malditos», outra expressão que os dicionários não aclaravam.
Ao cimo, ocupando a área enorme que tinha sido de um  convento e de um hospital, ficavam os «Grandes Armazéns do Chiado». Os jornais garantiam que não havia igualem Paris, e eu, que já então lera Au bonheur des dames (Zola era outro Deus) tremia de excitação ao dar-me conta de que daí a minutos lá ia entrar."