"Primeiro as recordações. No Verão dos meus dezassete
anos, pouco antes de acabarem as aulas, recebi dois golpes duros: com uma carta
de seis linhas, Teresa – a das tranças negras e olhos verdes– findava a paixão que nos queimava desde a Páscoa, e no dia
seguinte, no parque, descobri-a abraçada a um brutamontes que jogava
basquetebol e estudava Medicina.
Traição dessas só deixava um caminho: fugir para longe e refazer a minha vida
nos braços de outra – de preferência também com olhos verdes e tranças negras.
Remoendo planos de vingança futura, comecei a juntar em segredo o que me parecia
indispensável para uma expedição longínqua e definitiva. Os meus pais, porém,
misteriosamente ao corrente dos meus amores infelizes, e mais que satisfeitos
com o meu excelente exame, concordaram que eu «fugisse», recomendando mesmo
Lisboa como o lugar ideal para arejar a tristeza, fazer novas amizades e
descobrir um mundo maior.
Os comboios do norte paravam então na estação do Rossio, no centro a cidade, e
aí cheguei às seis da manhã de um domingo de Julho de 1947. A primeira impressão foi de grande estranheza. Os poucos passageiros desse
comboio nocturno e barato, que levara catorze horas para fazer trezentos e poucos
quilómetros, pareceram desaparecer como por mágica. Para o lado da Avenida e no
Rossio não se via vivalma. Nenhum carro, nenhum eléctrico. Fui até ao meio da
praça e descobri, parados junto da estátua de D. Pedro, rindo às gargalhadas,
três soldados que tinham viajado no mesmo vagão: dois de farda limpa e
espingarda ao ombro, o terceiro algemado entre eles, a farda esfarrapada.
Do resto da manhã pouco me lembro. De começo instalei-me na Pensão Tivoli, hoje
hotel de luxo, e aluguei depois um quarto na Praça da Alegria. Por essa altura
já a tristeza me abandonara, e das raras vezes que a imagem da Teresa apareceu
a mortificar-me, lembro-me de ter cuspido vigorosamente para o chão o meu ódio
dela e o mau gosto dos primeiros cigarros.
Nessa primeira tarde, insaciável de agitação e ruído, descia a avenida pelo lado
direito, fui espreitar os teatros e cafés do Parque Mayer, passei os
Restauradores e segui até ao Rossio, que logo me pareceu familiar. Depois
hesitei um momento à entrada da Rua do Ouro, sabendo que o Terreiro do Paço e o
rio ficavam ao fundo. Mas a escolha de há muito estava feita. Antes de virar
para a direita e subir o Chiado, parei um instante, acendi outro cigarro, a dar
tempo para acalmar dentro de mim o sentimento de solenidade e a emoção que me
tomava.
Nos jornais e em todos os livros de Eça – o maior dos nossos romancistas, nessa
altura para mim um deus e hoje ainda de longe o meu favorito – o Chiado
resplandecia, era único.
A burocracia municipal, pobre de fantasia, tinha-o dividido em Rua do Carmo e
Rua Garrett, mas isso eram apenas placas nas esquinas, nomes de circunstância a
recordar um convento e um dândi.
Mais que um seguimento de ruas, cafés, livrarias, casas de modas, joalheiros e salões
de chá, o Chiado tinha o ambiente magnífico de um fórum da antiguidade.
Realizavam-se nele harmonias secretas, era simultaneamente lugar de dinheiro,
de injustiças, beleza, intelecto, de poderes bons e maus, de esbirros e poetas.
A Ópera ficava quase paredes meias com as câmaras de tortura da PIDE. Os grandes
burgueses, os aristocratas e os políticos, almoçavam no Grémio Literário,
fundado em 1846, e depois, de charuto aceso, iam ali ao lado à Bertrand ou à Sá
da Costa, trocar impressões com os escritores. Num grande desdém mútuo, é certo,
mas com maneiras impecáveis de um refinamento quase oriental.
Na Benard, no Baltresqui, na Ferrari «Casa Fundada em 846,
Almoços à Lista e Chá Elegante às 5 da Tarde», anunciava a tabuleta – as
condessas, as actrizes e aquelas mulheres a que os romances chamavam demi-mondaines (nenhum
dos
meus dicionários
dava o significado) passavam horas a debicar manjares delicados, beberricando
chá e copinhos de porto.
A Casa Havaneza e A
Brasileira não eram apenas uma tabacaria e um café, mas dois pontos
vitais da cidade e do país: aí, entre dois charutos ou dois cafés,
faziam-se e desfaziam-se reputações, governos, negócios e promessas.
O Joalheiro Brandão
tinha no Chiado um estabelecimento onde se forneciam os reis. O Chiado tinha
visto passar os grandes da poesia: Bocage, o maior do seu século; Gomes Leal, um
génio igual a Camões; Pessoa; António Botto. Com excepção de Bocage, «poetas
malditos», outra expressão que os dicionários não aclaravam.
Ao cimo, ocupando a
área enorme que tinha sido de um convento
e de um hospital, ficavam os «Grandes Armazéns do Chiado». Os
jornais garantiam que não havia igualem Paris, e eu, que já então lera Au
bonheur des dames (Zola era outro Deus) tremia de excitação
ao dar-me conta de que daí a minutos lá ia entrar."