segunda-feira, agosto 9

Entradas frias

 

"O príncipe travou-lhe o braço com autoridade e levou-o para o restaurante, a chusma de empregados logo a rodeá-los, o chefe-de-sala abrindo ele próprio o champanhe, inquirindo num sussurro se Sua Alteza ia desejar as ostras do costume.
Foi um martírio. O príncipe debicava com uma lentidão exasperante, saboreava minuciosamente, e o jantar, em vez da refeição corrente que tinha esperado e não lhe apetecia, fora um banquete elaborado e excessivo.
Às ostras seguiram-se entradas frias, entradas quentes, a sopa, o peixe, depois carne, faisão de caça, o cesto dos queijos, o carrinho das sobremesas. Cada prato acompanhado por um vinho diferente que o escanção provava com demora, aspirando e remoendo antes de servir.
Finalmente vieram os conhaques, o café, os charutos que os criados tinham previamente amornado à chama de velas e acendido com varinhas de cedro.
No início sentira-se estonteado de cansaço. Depois, com a comida e o álcool, tomou-o uma moleza eufórica, respondeu amistosamente ao príncipe que queria saber em detalhe da sua vida, da sua loja, da sua quinta em Sintra, da família, das aparições de Fátima, das suas opiniões sobre a guerra, do interesse por Tolstoi  nas escolas portuguesas. E quando ele propôs passarem primeiro pela roleta, achou indelicado mostrar pressa.
– Perdi excessivamente nos últimos dias, mas como diz um antigo provérbio russo: ...
O senhor Brandão não compreendeu, nem o príncipe traduziu, já tomado pelo vício, alheado de tudo e todos, mandando trocar por fichas um modesto maço de notas.
– As últimas.
Houve quem sorrisse. Formou-se um pequeno grupo que logo se desfez, porque as paradas não eram espectaculares e a maneira nervosa como ele jogava tinha criado à sua volta um mal-estar. Alguns jogadores mudaram ostensivamente de mesa, outros fizeram alusões desagradáveis, houve os que pararam de jogar à espera de vê-lo afastar-se.
Durante quase uma hora só teve lances infelizes e por fim, atirando as últimas fichas, levantou-se sem esperar que a roda parasse, transfigurado, parecendo não reconhecer o joalheiro que tinha ficado em pé atrás dele, e a quem fez cambalear com um empurrão furioso. Mas logo o modo irritado se transformou em sorriso:
Monsieur Brandao, je m’excuse.
– Se Vossa Alteza agora tivesse a gentileza.
– Desculpe, mas não recordo.
– De me acompanhar ao escritório do Fonseca. Duas palavrinhas.
O russo olhou-o interdito, acendeu outro charuto e foi com ele."

...

in O Joalheiro