sexta-feira, outubro 16

Moinhos e sermões

Com a idade que tenho, vivendo em conforto, sem doença que me aflija, a consciência em paz, bons vizinhos, respirando ar puro, daria prova de sabedoria se deixasse de me aborrecer com a humanidade, pusesse fim à preocupação de constatar que ela recusa ir para onde eu gostaria vê-la encaminhar-se e mostra nada aprender com as harmonia da Natureza e do Universo.

Sei de sobra que não sou único nesta vontade de que o mundo melhore, pois duma maneira ou doutra e com maior ou menor dose de egoísmo todos o desejamos. O perigo está em cair no quixotismo de lutar contra as ilusões, de nos deixarmos arrastar por certezas e ideais que são outros tantos moinhos de vento, descobrirmos inimigos onde há apenas sombras, esquecermos a fraternidade que nos devia unir.

Para meu mal devo confessar que são poucas as certezas que tenho e de vez em quando me vejo no papel de frei Tomás, pregando um sermão de que depois me arrependo, mas pior é o sentir que nalgumas horas me assalta o desespero de que um mundo assim, com tanta fome, tanto medo, ódio, raiva e desigualdade se afasta da rota de salvação, caminha acelerado para o fim.

Contudo também sei, não precisam de mo recordar, que o planeta sobreviveu a pragas e ao dilúvio, a terramotos, maremotos, calores infernais, imensas crostas de gelo.

Numa outra altura escrevi que "antigamente levava o vento as palavras em certa direcção, iam por carta ou telegrama, mas nunca mais longe do que o outro lado do planeta. Hoje vão para toda a parte, chegam talvez às luas de Saturno, onde, se lá há gente ou andróides, me pergunto, no caso de que as entendam, o que com elas farão.

O mais certo é que nada. Mas por cá não paramos de comunicar, cheios de convicções e certezas, esperançado de que alguém nos oiça, supondo grande, importante, única, a abençoada Terra. Mas da Terra já Eça de Queirós n 'A Relíquia nos desiludiu: "A Terra! que é ella senão um montão de cousas pôdres, rolando pelos céus com basófias d'astro?"