domingo, outubro 4

A vida é um fandango

A memória tem teimosias. Denise, que há duas décadas rendeu a alma ao Criador, vem-me muitas vezes à lembrança. Era colega, ensinava Literatura espanhola e vivia de tal modo as coisas de Espanha, que nas festas ou num jantar de amigos, chegava sempre a hora em que pedia uma música de Paco de Lucia e desatava num sapateado, reviravoltas e olés tão apaixonados que os presentes se deixavam arrastar por aquele entusiasmo, esqueciam onde estavam, quem eram, punham-se também aos olés, a imitar o sapateado e a fingir que tinham castanholas.

Nessas recordações de horas de amizade e feliz camaradagem num passado distante entra também Gustav, o marido de Denise e todo o seu avesso: esfíngico, pele amarelada,  sobrancelhas idem, enquanto nela tudo era agitação, a cabeleira tingida de um preto retinto e a tez queimada do sol. Contudo enternecia ver aqueles quase dois metros paralisados a um canto, seguindo babado a dez réis de gente que rodopiava como se tivesse nascido em berço andaluz.

Sabiam-no todos, sabia-o ele também, Denise era muito da liberdade, todas as liberdades e nada de guardar aparências, de modo que macho que lhe despertasse o cio deitava-lhe o lasso, em menos de um ai tinha-o na cama, usando-o com a presteza de abelha-mestra e a poucos dando a honra de recordar a cara, já que não se mostravam à altura de corresponder às artes de quem sabia tantas.

Diz-se que Deus escreve direito por linhas tortas, mas há sobra de casos para duvidar dessa sabedoria de pacotilha, e o de Denise é desses. A falar verdade nenhum de nós, colegas ou amigos, suspeitaria que no particular das questões de coito ela jamais viesse a encontrar fôrma para o seu pé. O certo é que encontrou e do modo que melhor convinha à sua natureza, um Pablo Goyán nascido para os lados de Almuñécar, de quem se dizia que já sapateava antes de aprender a andar e no flamenco ganhara fama igual à de Antonio el Bailarin.

Gustav voltara há muito para a Suécia, mas os nossos olhos guardavam a recordação e assim surpreendia ver agora Denise ao lado de uma figura de cara tisnada e corpo de tísico, nos pés uns extraordinários sapatos de solas e tacões desmedidos, que quase davam a impressão de que o víamos caminhar sobre andas.

Continua válido que as aparências iludem, colegas e amigos fomos um dia convidados para um muito católico casamento, ouvimos Denise jurar todas as obediências, acenamos-lhe um  adeus e vimo-la partir para a lua-de-mel, desaparecendo para sempre nos confins de Andaluzia.