quinta-feira, outubro 8

A descoberta de Lisboa

"A fotografia mostra um grupo de rapazes sorridentes. Com a caligrafia esmerada dos meus dezassete anos escrevi no verso: Lisboa, 11 de Maio de 1947.

            Um ano cheio de acontecimentos e novidades, descobertas, de primeiras impressões, de sonhos que nunca se realizaram. Vir a ser campeão de salto em altura, por exemplo. Ou milionário. Ter um veleiro de quatro mastros, um harem, dois cães e um rádio portátil da marca Zenith. Viver na Sibéria como Miguel Strogoff. Tocar violão. Quebrar lentamente os ossos do professor de Matemática.

            O campeonato de remo que nos levara a Lisboa - onde nos iríamos classificar em último lugar - tinha sido adiado por qualquer razão que agora não recordo, deixando-nos à solta na cidade uma semana inteira.

            Além de ser a minha primeira visita à capital, gozava, também pela primeira vez, uma liberdade desconhecida. E tudo me fazia encanto. As ruas, as tabuletas das lojas, os eléctricos, os cinemas, a arcada do Terreiro do Paço. Não me cansava de subir e descer o Chiado que, acreditar nos jornais desse tempo, igualava em luxo e esplendor as ruas de Paris, "inclusive os Campos Elísios."

            Comer sozinho no restaurante! Mandar vir camarões, carne grelhada com batatas fritas, uma caneca de tinto. Pudim de laranja. E café, se faz favor. Sair depois de Lucky Strike na boca, hesitando um instante entre Clark Gable e Humphrey Bogart, para finalmente passar a tarde a cantar com Al Jolson pela soma de 4$50, o preço da plateia.           

Na esquina do Rossio com a Rua do Ouro, onde há agora um estabelecimento que é meio livraria, meio quiosque, tinha eu parado logo no primeiro dia, fascinado pela joalharia que então ocupava o prédio. Não porque me interessassem especialmente as pratas ou as pedras, mas sem fala diante daquela exposição de riquezas acumuladas nas vitrinas.

            Os fios de ouro caíam em cascata. As salvas tinham dimensões de rodas de carro. Os diamantes cintilavam em estojos forrados de veludo preto. Montões deles. Havia candelabros da altura de um homem e toledanas embutidas de rubis. Correntes, alianças, os anéis grossos com que as viúvas se fazem inveja. Fruteiras desco-munais. Crucifixos de metro em "prata massiça, 99,9% pura." Querubins. "Últimas Ceias." Caravelas de filigrana. Talheres dourados, pérolas, facalhões para trinchar perus, argolinhas de marfim para as gengivas dos bébés. Galheteiros em "prata antiga do Brasil."

            As vitrinas eram fechadas por espessos reposteiros azul-escuro, a esconder o interior, bem assim como a porta. Da única vez que a vi abrir-se, um segundo ou dois, as cintilações e fulgores vindos lá de dentro, multiplicadas infinitamente em cristais e espelhos, fizeram com que deixassem de me parecer exagero a história de Ali Bábá e o resto das Mil e uma noites. Ao mesmo tempo tornou-se-me claro ser verdade tudo o que eu tinha lido sobre riquezas orientais, as minas de Salomão, os tesouros do Négus, os galeões que no passado chegavam a Lisboa com toneladas de ouro e prata: a evidência estava ali.

            Sei que me senti indiscreto, tomado por um vago receio de que, ao ficar assim parado, estorvaria a passagem das princesas, dos nababos, dos monarcas que muito certamente vinham encomendar as suas tiaras e coroas. Recuei uns passos para ver melhor as grandes letras douradas sobre fundo de mármore negro e polido: "OURO - J. LEITÃO, JOALHEIROS - PRATA". Depois fui-me pela cidade, alegre com tanta coisa bela, ao mesmo tempo um quê melancólico, ciente de que imponências assim pertenciam a outros mundos e o sonho permaneceria na minha vida um dos obstáculos maiores."

in O Joalheiro