terça-feira, novembro 26

Nótulas (37)


Sou leitor assíduo de Eduardo Cintra Torres, é dele esta crónica publicada anteontem no Correio da Manhã:
A sociedade tem horror ao vazio

Acções como a dos polícias crescem na sociedade fragmentada. O Governo governa para clientelas.
O muro de betão levantado pelo governo em S. Bento revelou como o poder político não compreende os movimentos de política do povo, desde logo porque nem ele, nem os partidos, nem os sindicatos os controlam. Chamam-lhes ‘inorgânicos’: para eles, orgânicos só eles mesmos. Desconhecem a orgânica dos ‘inorgânicos’: ligeira, participada, desburocratizada, com direcção fluida e revezada - tudo características da muito antiga política do povo que governo, partidos e actuais sindicatos não têm.


Numa fuga para a frente, que lhes sai cara, chamam-lhes populistas e de ‘extrema-direita’. Inventam fake news sobre eles, que estão ‘infiltrados’ pela ‘extrema-direita’, o que só será verdade no dia em que o provarem: nas notícias sobre o assunto não li uma única prova de ‘infiltração’ (e nunca falam de ‘infiltração’ dos partidos nos sindicatos). 


Procuram ‘sinais’: foi um ver se te avias nos media e redes sociais a interpretar-se o gesto de manifestantes com o círculo de polegar e indicador e os restantes dedos levantados - ‘supremacia branca’! Os próprios dizem que o círculo é o ‘movimento zero’ e os três dedos ‘respeito, dignidade e valorização’. Mas a sabedoria semiótica não parou: no Oriente o gesto significa harmonia, no Ocidente é um OK; em 2017 uns racistas americanos fizeram dos três dedos um W e do círculo com a ‘linha da vida’ da mão (!) um P, quer dizer, White Power. Tanta semiótica serviu apenas para iludir o principal: saber se os polícias têm razão nas reivindicações. 


Acções como a dos polícias crescem na sociedade fragmentada. O governo governa para clientelas. Sem dinheiro para tudo, ignora quem se sente abandonado, minorias que dão poucos votos, preferindo os bubus, os burgueses-boémios das grandes cidades, que dão mais votos. Entra aqui o Chega. Quer ocupar espaço nos grupos periféricos (polícias, Interior, bairros inseguros) preteridos em relação aos bubus. Na política do povo escolhem-se as elites que a cada momento lhe parecem mais vantajosas para a obtenção das suas reivindicações. 


Não por acaso, o Chega teve mais votos onde há menos poder de compra e serviços de saúde. A sociedade tem horror ao vazio, como a Natureza: tendo os partidos sistémicos abandonado estas periferias sociais, não se podem queixar de que outros ocupem o espaço. Esperavam o quê? O ressentimento de abandono é real. As pessoas escolhem quem lhes dá voz e aparenta apoiá-las. Se não são os da ‘esquerda’ e os do ‘centro’, alguém haveria de ser. Parece que calha agora ser o Chega. Se outros partidos quisessem inverter este apoio popular, teriam de mudar as suas próprias políticas.