Na aldeia já não
estranham a mulher de meia idade que há tempos veio para ali e se senta nos
degraus da porta de casa a cantarolar uma música. Sempre a mesma. De vez em
quando acompanha-se ao violão. Sabem-lhe o nome, mas o que ouviram contar devem
ser histórias.
A propósito do
sofrimento alheio, duma ou doutra aflição, doença, drama, momento difícil, há
sempre uma boa alma para repetir a sabedoria antiga de que com o tempo isso
passa. É possível, mas quem o disser diante dela e for bom observador, nota que
mal-grado uma aparente serenidade a face se lhe contrai, e durante segundos
aperta os lábios como para evitar que se lhe escape a confissão de dores que raro
partilha. E dores tem muitas, confessadas, inconfessáveis, algumas que só
suporta porque as tornou ficção, casos que passariam o exame não fosse o ela às
vezes descuidar-se no fingimento e escondendo o rosto ceder às lágrimas.
Para aquietar a
consciência há quem diga que já não acontece, os tempos eram outros, mas ela nasceu,
criou-se e conseguiu sobreviver naquela pobreza que alguns romanceiam, sem ideia do que é a vida num casebre onde o pão
falta e a lei é a da selva. Não esperem detalhes, que os não dará, salta no
tempo para falar daquele que como muitos usou o seu corpo, mas seria o primeiro
de quem recebeu carinho, teve filhos e depois atraiçoou, porque o animal ferido que vivia dentro de si não
suportava a fraqueza alheia.
Demorou a encontrar
o que veio depois, mas então já não mandava a necessidade, sim a cabeça, com um
rigor do cálculo que usado noutro campo lhe teria dado fama. Manhoso, falso,
autoritário e cruel para os que dele dependiam, para ela um cordeiro, surpreendeu-a
a facilidade com que o podia manipular, sempre em busca do limite, excitada pelo
drama dos que se despenhavam, enquanto ela dançava ágil na borda do precipício.
De como acabaram ambos na prisão raro fala, deixando também vago porque foi
parar aos confins da Beira Alta. Compensa às vezes esse laconismo contando a
cena que lhe ficou na tarde da despedida no aeroporto de Salvador: sentado numa
mala, fitando os pés, indiferente ao bulício e aos que paravam a ouvi-lo, um
velho negro cantava como se estivesse sozinho, com um sentimento de dar
arrepios.
A melodia tocou-a
tão fundo que desde aí fez dela a sua ave-maria, nem repara que une as mãos quando
entoa baixinho: “Meu desespero ninguém vê. Sou diplomada em matéria de sofrer.”
(*)
......
(*) Diplomacia – samba de Óscar da Penha, o
Batatinha (1924-1997).