domingo, junho 23

Bilhetes (37)


É uma loja genuinamente antiga, com o desarrumo de tempos há muito passados, os quatro ou cinco  que lá cabem vão tirando das prateleiras e dos sacos no chão aquilo que  precisam, depõem-no no balcão, pagam, e se não têm pressa fazem dois dedos de conversa com o proprietário que, também à moda antiga, é o clássico e único faz-tudo.
Naquele ambiente caseiro, sossegado e familiar, num momento em que ontem de manhã éramos três fregueses, o estabelecimento de repente escureceu, porque a porta por onde entra a luz – a diminuta janela pouco conta – estava tapada por duas mulheres que hesitavam se entrariam ou não. Demorou, mas finalmente entraram, duas estrangeiras que não podiam ser mais dissemelhantes na postura, ambas com aquele ar que pode ser de confusão, mas algumas vezes é só do aborrecimento impaciente de quem procura algo que não encontra.
Estas tinham-no encontrado, e uma delas – metro e noventa, cara-de-pau, sinais de anorexia – estendia o braço telescópico e ia tirando das prateleira e do chão o que precisava (anotei três cenouras, uma cebola, duas bananas, duas maçãs, uma embalagem de queijo, duas garrafas de água) que ia passando à companheira, também cara-de-pau, mas roliça, metro e sessenta, e que as depunha no balcão.
Isso feito ficaram ambas especadas. Sem um sorriso, um gesto, um movimento, um olhar, qualquer ruído, como se o lojista fosse uma máquina e nós três sacos de batatas ou cartazes de publicidade. O lojista fez as contas, mostrou-lhes o papel, a gorducha pagou, e com a mesma cara-de-pau ambas desandaram, deixando-nos com a impressão de que não tinham estado ali, era como se tivéssemos visto dois fantasmas.
Reparei que não comentámos, fomos por diante com as nossas compras, o que diz bastante do sentimento em que nos deixaram.
A meio da tarde encontrei-as na esplanada do café. Conversavam sem se encarar, e pelo que ouvi eram dinamarquesas. 

Nosso Senhor as acompanhe, que voltem sãs e salvas para donde vieram e se deixem ficar por lá, porque destas são as que tiram a alegria de viver e a vontade de ser cortês.