sexta-feira, junho 7

Bilhetes (28)

O Futebol não é a minha paixão, mas pela força das circunstâncias vejo-me de longe a longe obrigado a ver um jogo, a ter opinião sobre o que vejo, e a escolher equipa da minha simpatia. Bico-de-obra para o Portugal-Holanda do próximo domingo, porque ganhe quem ganhar ficarei sempre com pena.

Numa ocasião idêntica foi escrito este texto:


"Viva o Porto!"

Dezembro de 87. Vinte e cinco anos, mas a recordação ficou. Frio, meus senhores! Frio como não lembro de jamais ter sentido. O termómetro indicava oito abaixo de zero, mas o que os aparelhos mostram nem sempre se compara ao que a gente sente. E as vinte mil pessoas regeladas que tinham começado a encher o Olympische Stadion  de Amsterdam, cada uma fazendo intimamente promessas ao santo da sua devoção para que lhe favorecesse o clube, iam encolhendo aos poucos, perdendo a estatura. Matulões de dois metros pareciam encurtar de um terço e o senhor José Ferreira, do bairro da Ribeira, no Porto, sentado ao meu lado, afirmou que um gelo assim era ruim, até podia haver mortes. Que os "nossos" provavelmente não iam aguentar. A prognose afigurou-se-me razoável, tanto mais que eu próprio parecia ter perdido já o uso dos braços e das pernas.
Cabe fazer aqui uma confissão: a falar verdade nunca vejo futebol, já que aquele que habitualmente vejo sentado diante da televisão, no conforto de minha casa, pouca semelhança tem com o espectáculo ao vivo. São imagens de conserva, uma diferença de sabor maior do que entre a sardinha fresca e a de lata.
Há setenta anos, no Porto, o futebol era coisa familiar. Não se jogava em estádios mas em campos com bancadas de madeira, enquanto os espectadores comiam as suas merendas e bebiam vinho e pirolitos. Num domingo de grande festa meu pai levou-me a um Porto-Benfica, para que eu visse ao vivo o famoso "Pinga".
As recordações desse dia são nevoentas. Lembro-me de me terem oferecido um galhardete e um distintivo que usei durante anos na lapela. Depois a vida tomou as suas muitas andanças, deu voltas e reviravoltas. A televisão nasceu, cresceu, passou a trazer-nos o futebol a casa. Primeiro, naquele preto e branco que parecia uma animação das fotografias do jornal. Depois em cores bonitas demais, falsas demais.
Foi talvez o cansaço da artificialidade e a nostalgia desse longínquo domingo da infância que me levou ao Olympische Stadion.
Pequeno esforço para quem como eu vive perto. Grande esforço para o senhor José Ferreira, que do Porto à Holanda tinha passado dois dias no comboio e estava ali a tiritar comigo, queixando-se do frio, do hotel, da comida, dizendo que não aguentava. Garantindo que os "nossos" também não iam aguentar.
- Sabe que nos últimos dois anos houve três Porto-Ajax e os holandeses nunca meteram um golo? Nem sequer um?
Eu não sabia, mas ele garantiu que era verdade. O seu receio era que o frio viesse estragar uma vitória tão bonita.
Do jogo não falarei. Setenta anos de ignorância do futebol ao vivo não se apagam num dia. Mas também não é preciso que fale. Toda a gente viu e ressentiu. No dia seguinte os jornais holandeses só tinham elogios e um deles pôs no cabeçalho: "Rui Barros, um pequeno que se vai tornar grande." Outro cabeçalho: "Um Porto superpoderoso respeita a dignidade dos garotos do Ajax". Belas reportagens de que os "nossos" se poderiam justamente orgulhar, unânimes nos elogios. "Os jogadores do Porto realizam o paradoxo de serem bulldozers com a elegância de bailarinos". "O gigante Geraldão, 1,92 m, 92 kg de peso, assustou Bosman". "Rui Barros, um fedelho de pouco mais que metro e meio, mas que nada parece poder parar. Impressionante!"
No café, esquecido o frio da noite anterior, o senhor José Ferreira pede que eu traduza mais devagar, porque quer escrever tudo direitinho como deve ser. E já agora, se não me importo, ponho o meu nome e direcção por baixo, porque só assim é que os amigos lá na Ribeira vão acreditar.
Os jornais holandeses embrulha-os ele cuidadosamente num saco de plástico e caminhamos para a estação. Pena tem de não ser homem de posses. Se lhe viesse uma lotaria iria com os rapazes para toda a parte, não os largava.
Mas temos a televisão - digo eu para o confortar, esquecido de que as cores são enganosas, bonitas demais, e nada pode substituir a realidade.
Abraçamo-nos. O comboio que por Paris o levará em dois dias até casa, está quase a  partir. Abraçamo-nos mais uma vez. Fazemos a promessa solene de que nos voltaremos a ver para beber juntos o carrascão da amizade. Ele abre janela da carruagem, vejo-o agitar inesperadamente uma bandeirinha azul e branca e gritar com as lágrimas nos olhos:
- Viva o Porto!
A emoção paralisa-me um instante, o comboio passa, ganha velocidade, a bandeirinha acena já longe. O meu grito perde-se na distância e no ruído, mas ressoa no coração: - Viva a gente do Porto!          
………….
Nota: escrito em 1992 este texto encontra-se em Mazagran – Qutezal, 2012.