sábado, junho 15

A arte de montar


Saber ouvir confidências é uma qualidade que alguns parecem ter de nascença, mas para aqueles que, dados a um excesso de simpatia, tendem de imediato a identificar-se com o narrador, torna-se por vezes doloroso manter um aspecto que demonstre genuíno interesse e ao mesmo tempo esconda até que ponto o sofrimento alheio os afecta ou obriga a calar.
Tal como o conheço, bem sucedido na vida, seguro de si, dado a uma certa frieza, seria ele o último de quem esperava a confidência, que além de me apanhar surpresa veio perturbar as minhas recordações.
Nasceu em família abastada, com três irmãs, dois irmãos, ele o do meio, e por ser de todos o mais sensível o mais chegado à mãe, que também o protegia da violência do pai, furioso por ver naquele rebento todo o seu contrário. Essa protecção viria a terminar de maneira dramática uma tarde dos seus quinze anos, num momento em que ele, talvez mais do que nunca se sentia acarinhado, próximo da mãe, e lhe confiava o sonho de estudar Medicina, a ouviu dizer que os seus filhos, todos os seis, eram a grande desilusão da sua vida. Que não perguntasse porquê, pois nunca lho diria.
Tinha hesitado antes de mo pedir, mas com os pais agora falecidos poderia eu, que era da mesma geração e os conhecera bem, dar-lhe alguma pista sobre aquela atitude da mãe?
Escondi mal que me apanhava desprevenido, teve ele a elegância de fingir que não via a minha confusão e se dava por satisfeito com os lugares-comuns que debitei.
Mas com que palavras e que cara poderia eu contar-lhe a história da miúda mal saída da adolescência, linda como os amores, inteligente, sensível, delicada, entregue pelos pais  a um cinquentão brutamontes para saldo duma penhora? Que cores deveria usar para fazer o retrato do alarve que o gerara, que quando o felicitavam porque de novo ia ser pai respondia às gargalhadas: “Um homem deve saber montar, a mulher só tem de ser boa égua”?
O espírito de sacrifício da jovem que aceitou deixar-se enterrar viva, que a vida inteira sofreu a bruteza do garanhão e, sem revolta, conseguiu desempenhar até ao fim o papel a que a tinham condenado, certamente daria a trama de um romance. Mas do mesmo modo que há promessas que se cumprem e segredos que se guardam, também há histórias que não se revelam, fosse ele apenas pela admiração que nos causa o espírito de sacrifício com que algumas almas enfrentam a adversidade, o silêncio a que se condenam até à morte, poupando assim aos que lhes são queridos o horror do seu inferno.