quarta-feira, janeiro 5

Pecador me confesso

Não é caso de arrependimento ou de adoçar a pílula, pois o que aqui disse saiu do coração e assim é: uma palavra ou frase em língua estrangeira, pode ter a sua utilidade num texto. O abuso, não. A pose, ainda pior. Ninguém acredita que você comece o dia a folhear o Times e dê prioridade à leitura da New York Review of Books sobre o pequeno-almoço ou o cumprimento dos deveres conjugais.
A mim obriga-me a franzir  o sobrolho, diminui o apreço em que o tenho, mesmo que no resto se salve leva má nota.
E agora, metendo a mão no peito: a minha geração e as anteriores sofreram de idêntica pecha. Não tínhamos rádio, nem têvê, os filmes eram poucos, a fonte em que bebíamos eram os jornais e os livros, de maneira que botávamos figura usando a moda então secular do Francês, com a desculpa de que o senhor Eça de Queiroz também o fazia. Não nos incomodava que dele alguém tivesse dito: "Tem muito talento este rapaz, mas é pena que estudasse em Coimbra, que haja nos seus contos sempre dois cadáveres amando-se num banco do Rossio, e que só escreva em Francês".
O que contava, assim nos iludíamos como você se ilude, era mostrarmos uns aos outros e ao Mundo (que Mundo?), que não éramos do vulgo, mas eleitos, muito ao corrente, gente fina.
Que eu saiba, espanhóis e franceses, maus em línguas estranhas e excessivamente orgulhosos das suas, mostram-se avessos em usar as alheias, mas aqui na Holanda não faltam bizarrias.
Assim, em prosa ou palestra, discurso político, charla de café, certo tipo de gente mostra quem quer ser, ou se julga, atirando uma pitada de Latim. Cartas particulares, comunicações da Câmara, folhetos de saldos e avisos da Policia começam às vezes pela críptica abreviatura L.S. - em cursivo, claro, pois os iniciados sabem que atrás dela se esconde Lectori Salutem (Saudações ao Leitor). Outros há que acham distinto começar as missivas com um Amice – o vocativo de amicus (amigo).
Curioso e também corrente é hábito de crismar os recém-nascidos com nomes latinos.  A um rapaz chamarão familiarmente Ad, ou Bart, ou Ton, mas oficialmente, na acta do baptismo e na do Registo Civil,  é ele Adrianus,  Bartholomeus ou Anthonius.
Está a ver? Não é só você, nem só eu. O pavão também mostra as penas e o holandês, que pouco e ao de leve o aprendeu na escola, arrota  em Latim a sua posta de pescada.