Chuva forte aqui nos montes nunca assustou, mas preparos de dilúvio, com trovões, relâmpagos, e nas entranhas da terra um ribombar de locomotiva em crescendo fortissimo, às quatro da manhã a aldeia acordou. Escuro de breu, porque a luz tinha "caído", mas ao contrário de antigamente nenhum grito de medo, nenhuma invocação ao Altíssimo, só um ou outro "Ai Jesus!", aqui e além uma cabeça a espreitar.
De manhã a água não tinha ainda escoado. Alguém disse que se tivéssemos barcos e a rua fosse plana tinha sido como se vê às vezes nas notícias. Acenámos que sim, e por um instante imaginámo-nos a ser entrevistados para a TV, apontando paredes caídas, telhados danificados, os buracos que a enxurrada teria aberto na rua. Falou-se depois do temeroso e inexplicável ribombar. Um tinha quase a certeza de que fora avião a voar baixo. Outro, com mais certeza, porque já tinha visto disso em África, garantiu que era o barulho duma tromba de água. Mais modesto, um terceiro alvitrou que o vento às vezes...
Por volta da hora do almoço o céu apareceu azul, o sol brilhava forte, eu ia a passar quando o senhor Zacarias me chamou com um aceno. De manhã tinha ouvido a conversa e queria-me uma fala:
- São uns tontos! Julgam que as chuvas e as trovoadas aparecem sem mais nem menos. Se passassem as noites como eu a olhar para a serra haviam de ver coisas que nem acreditavam. Mas não adianta. Para eles só televisão, a televisão é que é.