Acabado de nascer levaram-me ao baptismo e entre as primeiras lembranças estão as orações que minha avó me ensinava a recitar. Padre-nossos, credos, avé-marias, e outras mais complicadas, difíceis de aprender de cor. Cheias de invocações a santos que eu desconhecia, carregadas de mistério, assombreadas ainda mais pela cozinha, sobretudo no Inverno, alumiada pelo azeite dos lampiões e a fogueira do lar.
Em torno do lume, sentadas nos escanos ou em banquinhos, as mulheres, quase todas de luto pela morte de parente, devoção ou promessa, responsavam desfiando os rosários. E eu, aconchegado no regaço da avó, sonolento com o calor da lareira, mal lhes notava o rosto, tremia de medo quando uma ou outra, de mãos postas, erguendo os olhos para o tecto, invocava a alma dum falecido ou os favores do padroeiro.
Terrificado, esperava a aparição de entes sobrenaturais, de figuras barbudas com túnicas coloridas, como eram as imagens da igreja. Mesmo à luz do dia, o tecto alto e escuro sempre me pareceu encerrar mistérios, vultos capazes de virem por ali abaixo aos gritos e com ameaças.
Além das orações aos santos “verdadeiros”, havia outras para as quais as mulheres se concertavam com muitos bichanares, preparos de ervas, azeite virgem, sal do mar e o Livro de São Cipriano. Juntavam-se na cozinha, a porta aferrolhada, a quebrar o mau-olhado das crianças, sobretudo o meu, porque andava sempre comido de lombrigas, bruxas e feitiçarias.
Tudo isso em segredo e a ocultas do padre, que na missa trovejava contra as crendices, informado por uma ou outra comadre que, nos apertos da confissão, ou para lhe ganhar as boas graças e indulgências, punha tudo em pratos limpos.
Nas maleitas e aflições ofertavam-se aos santos umas tantas prendas em dinheiro, trigo, velas de cera, e quando no Verão a barbaridade do sol ameaçava queimar as colheitas, tirava-se para fora o andor de São Lourenço. Ao ombro de oito raparigas garantidas virgens, era ele passeado pelos montes com grande procissão de gente, cantando ladainhas e pedindo o favor da água, o que algumas vezes aconteceu.
Uma tarde, por não sei que traquinice, a minha avó levou-me pelas orelhas para diante desse mesmo São Lourenço, e ali na igreja, para mim enorme, sem outra presença viva que a nossa e os olhos muito negros das imagens, invocou ela o santo para que me desse emenda e a protecção de que eu - teria então oito anos - tanto carecia.
A mim ordenou que me atirasse de joelhos e esperasse o tempo de dez padre-nossos e dez avé-marias para que São Lourenço se apiedasse. De cabeça baixa, rezando e chorando, jurei que não me meteria noutra, seria dali em diante modelo de perfeição. O que não fui, nem o padroeiro parece ter levado a mal a falta da promessa.
A dez de Agosto é a festa. Há romaria, sermão, missa cantada, arraial, uma procissão de arromba, as ruas atapetadas de ramos verdes e flores, as varandas e janelas enfeitadas com colchas e panos de seda. Tudo cores garridas, a ponto que o colorido, e o dourado dos andores, fazem esquecer as paredes sem cal, a miséria e as tristezas que ali se escondem.
Vão nela rezando os doentes e os precisados. As viúvas e os órfãos ajoelham atrás das portas cerradas, para que com as suas aflições não perturbem as alegrias e esperanças dos outros.
Nessa procissão fui algumas vezes de anjo e mais tarde, quase homem, também peguei ao pálio, mas nunca me confessei, nunca comunguei. Para grande escândalo de minha avó até deixei de ir à missa, informando-a redondo que Deus não existia, ao que ela de pronto respondeu que me faltava o juízo.
A imagem que em garoto me fiz de Deus é a que ficou, e se por vezes, raciocinando, a quero afastar, é essa a que reaparece nas horas de medo e aflição. O Criador é um sexagenário saudável, de face bondosa e barbuda, bigode, cabelos castanhos a descer em anéis até aos ombros. Veste uma túnica cor de creme que lhe chega aos pés, cingida por uma corda de seda em volta da cintura. Sobre essa túnica tem uma outra sem mangas, igualmente comprida e de um vermelho escuro.
As mãos de Deus estão sempre erguidas, como para proteger ou abençoar. Não recordo tê-lo jamais imaginado de costas ou de perfil, nem a andar, mas sempre de frente e imóvel.
A gente pede, Deus às vezes concede, mas em certas ocasiões, talvez porque somos tantos a pedir e assim causamos atrasos, a satisfação só chega quando há muito esquecemos o pedido. Por isso nos descuidamos de agradecer, o que Ele então leva a mal, fazendo desandar a roda da fortuna.
Esse é o meu Deus. Um Todo-Poderoso com variações de bom e mau humor de avô rabujento. Capaz de tudo perdoar ou de afligir sem razão, mas a quem nós também não levamos a mal a inconsequência e o peso das aflições com que nos agrava. Por isso falamos d'Ele e o tratamos como pessoa de casa, um familiar que tem os seus repentes, a quem é preciso tratar com respeito e a quem se dão presentes.
Esse Deus da minha terra, que umas vezes favorece e outras repreende ou castiga, mas com quem é sempre possível conversar, habituado que está às maneiras subtis e tortuosas dos homens, esse nosso Deus é muito, mas muito, diferente do que mora aqui na Holanda.