domingo, agosto 1

A sina da fantasia

 

Porque seria dolorosa a inconfidência, há alturas em que o remédio é deitar mão da fantasia, mas de modo a que o leitor, apanhado de surpresa se sinta confuso, tenha dificuldade em decidir qual a percentagem de invenção, e em que partes o relato soa genuíno.

Mentira é mentira, mas para a pessoa que sou, a quem coube a sina de viver da fantasia é muitas vezes penosa, e faca de dois gumes, a confissão de que em certas situações a melhor maneira de criar veracidade é a do exagero, fazer com que o verbo mentir ganhe qualidades que a verdade não possui.

Este arrazoado não é desculpa ou explicação, somente intróito a um problema que defronto ao compor a prosa que, vai para quatro anos, semanalmente aqui deixo.

Evidentemente não tenho de dar contas, nem ninguém mas pede, consome-me todavia o remorso de que para inventar um feito, ou soprar alma num personagem, só razoavelmente o consigo fazendo tábua rasa dum e doutro dos princípios que regem a vida em sociedade.

Não viria daí mal, não se desse o caso de que uma vez à solta no mundo é imprevisível o acolhimento que a fantasia recebe, ou por que lados anda, bem assim como as consequências que por vezes traz.

Vai para ano e pico, de tal modo me entusiasmei a fantasiar os problemas, zangas e absurdos dum casal de meia idade, que terminado o texto cedi a um momento de euforia pelo que me pareceu trabalho bem acabado. Depois o tempo passou, a vida e o mundo cuidaram que me não faltassem razões de preocupação, do texto que muito me agradara já nem memória tinha, e de súbito, com espanto igual ao que causa o trovão em céu limpo, recebo de um advogado a intimação de rectificar o texto publicado a tantos de tal com o título… sob pena…

Porque não aprecio intimações e fervo em pouca água, o reflexo foi deitar fora o papel, mas a curiosidade levou a melhor, li o resto e não pude deixar de sorrir à possibilidade de que se aloje em mim um espírito de adivinho.

Então não é que ficcionei os apertos dum cavalheiro que possui uma fábrica de calçado, mora em tal parte, vive em pé de guerra com a ex-mulher e os ex-sogros, de quem esbanjou o que tinham, e vai-se a ver que situação idêntica aconteceu numa vilóriazita onde nunca estive, com gente que desconheço, mas de facto também tem uma fábrica de calçado, e o nome do sujeito em questão é o diminutivo do personagem no meu enredo?

Não decidi ainda como vou reagir, verdade é que me sinto contrafeito, pois gosto de sentir o chão que piso e ele agora como que me escapa dos pés.