sexta-feira, novembro 20

O Sub

Porque chega de infectados, mortos, restrições, ameaças, confinamentos e medos, fica aqui o excerpto de um conto sobre um personagem  capaz de provocar um sorriso em quem precise de uma razão para sorrir.

O SUB

"Vondelstraat 20, Amsterdam. Na aparê­ncia um e­scritório com estatuto di­plomático, duas salas no rés-do-chão, uma bela placa de cobre na porta a indicar que ali se encontrava esta­be­lecido o Braziliaans Handelsbureau. Na realidade um teatro, onde de se­gunda a sábado, se representavam os actos de uma comédia em que o absurdo alternava com o hilariante, a pompa oficial se entremeava de cenas domés­ticas e, sem razão aparen­te, ninhari­as como a utilização de uma cadeira alheia, um papel extraviado, podiam atingir a violência das declarações de guerra.

Na sala da frente ficavam as duas secretárias. Cada uma em seu canto, cada uma com a sua janela, o seu telefone, as suas plantas. A min­ha mesa tinha sido colocada mais para dentro, perto das portas cor­rediças que nos separavam da sala do chefe. Aqui e ali gráficos coloridos e foto­grafias do Rio de Janeiro, São Paulo, da Amazónia, ilustravam a grandeza e prosperidade do Brasil. Contra a pa­rede oposta duas altas plantas tro­picais quase tocavam o tecto e, se o chefe estava, era entre elas que Ka­rel, o chofer, estaci­onava, alto tamb­ém, aprumado no seu uniforme.

Para as secretárias o dia co­meçava às nove, eu chegava por volta das dez, o chefe vinha depois do al­moço. O tempo arrasta­va-se moroso, com farto consumo de café, de cigar­ros, a abertura enfastiada do correi­o, uma vista de olhos apressada aos jornais de que depois, com vagas noç­ões da economia mundi­al e alguma fan­tasia, eu extrairia elementos para redigir extensos relatórios.

Neles - assim me ordenava o chefe - devia sobretudo ressaltar o apreço da comu­nidade internacional pelo extraordinário progresso da nação brasileira.

- Única maneira de guardar a mama, José! A gente escreve que as coisas estão difíceis, não vão direi­to, os caras lá no Rio começam logo com intrigas. Vai você para o olho da rua, volto eu para Dakar. Você conhece Dakar?

Eu não conhecia, mas sabia por experiência que ele gosta­va de compa­rar Dakar ao "pior dos infernos", e nessas ocasiões esperava de mim uma expressão preocupada.

Eu punha então a expressão preocupada, abanava a cabeça, enquanto ele prossegui­a:

- Dakar? O pior dos infernos! Em África, ainda por cima. Calor bruto. P'ra onde que você olha só tem pre­tinho. Pior que a Baía!

Para evitar que a desgraça, ao bater-nos à porta, me mandasse a mim para o desemprego e a ele para o des­terro africano, fabricava eu então os relatórios de que falei.

Yvonne batia o borrão à máquina, Artur, o chefe, expurgava-o do que ainda lhe parecia negativo, acrescentava umas quantas frases triunfantes, Lota passava o texto a limpo, Artur punha-lhe a sua floreada assinatura, eu preparava o envelope, o lacre para o carimbo "Co­nfidencial" e, finalmente, Karel ia registá-lo no correio. Essas activid­ades ocupavam-nos um mês.

Mesmo assim, porém, ou porque o ministro apreciasse o esforço de pro­duzirmos um relatório mensal, ou que tivessem dado resultado os ofícios em que Artur, sobrinho do presiden­te, se queixava de que devido ao excesso de trabalho e falta de pessoal, se ar­riscava a ter de adiar as suas própr­ias férias de Julho para Outubro, certo é que num dia de Janeiro de 57 nos foi comunicada por telegrama a nomeação dum subdi­rector.

 

Transferido de Génova, seria natural que o homem tomasse o avião, mas para nossa surpresa viria de combóio. No dia apra­za­do Karel e eu fomos esperá-lo à estação, percorremos debalde as carruagens já vazias de passageiros e preparávamo-nos para voltar quando longe, para lá do cais e rodeado de malas, avistámos um vulto que acenava.

Depois de uma vida nas "Águas e Esgotos de Petrópolis", André Cunha tinha sido empistolado para a em­baixada de Lisboa. Infelizmente, porém, com a última mudança de governo o seu pistolão enfraquecera e desde então ("Tal uma rolha em mar agitado", uma das suas expressões favoritas) ia sendo transfe­rido para países cada vez menos interessantes, via o salá­rio diminuir, tinha de se acomodar com posições subalternas.

- Veja você! Subdirector num departamento de bosta! Numa cidade de merda! - começou ele logo no carro, enquanto nos arrastávamos no tráfico de uma tarde de chuva e ventania.

- Funcionário leal, 'tá ouvindo? Homem que serviu! Vinte e cinco anos em funções de destaque! E para quê?  Me diga!

Como eu não sabia, ele olhou desconsoladamente para fora, franzindo a boca ao espectáculo da rua encharcada e das pesso­as que corriam fustigadas pela tempestade.

- Péssimo clima.

- Há pior - moderei eu.

- Pelos jeitos sempre chuva.

- Às vezes.

- Muito canal, também - ele acendeu outro cigarro, soprou o fumo directamente na minha cara, resmungando que para quem já tinha idade e não estava habituado, um país glacial e húmido como a Holanda favorecia as doenças, provavelmente até acelera­va o fim. E que o hotel que lhe tínhamos reservado com certeza era longe, com certeza era mau, capaz até de não ter aquecimen­to, como em Génova, onde o frio do hotel fora a causa do seu segundo infarto.

- O frio?

- O frio. Tenho atestado médico.

Fiz um gesto vago de assentimento para evitar discussões. Era sábado, sentia-me cansado, o meu desejo era instalá-lo depressa e regressar a casa. A uma dezena de passos do es­critório o hotel pareceu-lhe confortavelmente próximo e o quarto agradavelmente grande, com banho, radiadores que na verdade funcionavam e ele abriu ao máximo.

- Mas um bocado modesto. Eu esperava mais conforto.

- Assim perto foi o melhor que se pôde arranjar.

- Não tem restaurante. Não tem bar... Onde é que vou comer?

Estive vai-não-vai para lhe dizer com sarcasmo que na cidade não faltavam restaurantes e, não sendo paralítico, nada o impediria de os procurar. Mas calei-me. O homem era visivel­mente neurótico. À procura de arranhões e estragos, examinava minucio­samente as malas que o chofer ia trazendo, apalpava os radiadores, abria e fechava as torneiras, foi por duas ou três vezes certificar-se de que o autoclismo funcionava.

A chegada da última mala pareceu-me o bom momento para a despedida e fiz o gesto de lhe estender a mão, mas logo ele me parou:

- Espera aí! Você vai ter de me emprestar algum dinheiro, porque eu só trago dólar, e dólar aqui não dá, não é?

Informei-o de que na estação poderia cambiar a qualquer hora, era até um passeio bonito, agora que a chuva tinha passado. Ele olhou-me com a estranheza de quem se vê diante dum transtornado:

- Não mexo daqui, não! Manda esse moço cambiar. E que ele me traga qualquer coisa p'ra comer. Umas sandes, garrafa de leite, um pouco de fruta. Água mineral, também. Sem gás.

Karel saiu para o recado, sentei-me à espera que ele voltasse para me levar a casa. Cunha tirou o casaco, desfez o nó da gravata, tateou cautelosamente o fígado, o estômago, vestiu um roupão, calçou chinelos, sentou-se à minha frente.  

- Me sinto arrasado - disse ele, soprando longamente pelas narinas o fumo do cigarro - Este clima não vai dar certo comigo.

Seria fácil troçar, mas qualquer coisa na maneira das suas palavras, que de facto se não dirigiam a mim, fez-me mudar de opinião. Despido dos atributos que o tornavam quase imponente - o sobretudo caro, o Borsalino, os sapatos de verniz de tacão demasiado alto - era um homem franzino, de tez amarelada, cabelo grisalho e um bigode fino tão artificialmente preto que se diria desenhado. Encolhido no sofá, a tremer realmente de frio mau grado a temperatura tropical que os radiadores tinham criado, chupando o cigarro com uma agitação de drogado, a sua estatura diminuira de metade, parecia mais velho que os cinquenta e poucos anos que teria.

Deu-me pena e procurei confortá-lo. Havia muitos dias de sol, disse-lhe eu, e depois duma viagem tão longa era normal que se não sentisse em forma. Aliás, acrescentei, teria sido mais avisado tomar o avião.

Encarou-me com uma expressão de descrença, como se fosse meu propósito fazer votos pela sua morte. Justamente num avião sofrera ele o primeiro infarto, e noutra ocasião tinha vivido os horrores de uma aterragem forçada, com um motor a arder e as pessoas histéricas esgadunhando, pisando-se umas às outras para alcançarem as portas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

- Como não há duas sem três, avião para mim nunca mais - anunciou ele sombrio, indo de novo certificar-se da temperatura dos radiadores.

 

Na segunda-feira seguinte o chefe veio mais cedo. Com o cafezinho e os abraços - ambos se conheciam do Rio - houve um momento de confraternização geral, recordaram-se amigos, falou-se do plano de mudarmos para um escritório mais amplo, da esperança que finalmente se realizasse o tantas vezes prometido aumento dos salários. Depois passámos para a sala das traseiras e, fechadas as corrediças, enterraram-se inimigos, desfizeram-se reputações, criticou-se a sensaboria de vivermos entre holandeses e a excepcional pachorra do pessoal menor, holandês também. 

- Sabe você que aqui é quase impossível encontrar empregada? - perguntou Artur enfaticamente. - E se você encontra, você tem de pagar a ela salário de amanuense? Com tudo extra? Bonde, roupa, sapato, comida boa...

O Cunha sabia. Na Itália também era assim. Mais barato, talvez, mas para pessoal doméstico a Europa era um desastre. Felizmente em Génova estivera de casa e pucarinho com a senhoria, viúva de um barbeiro, e a santa mulher  encarregava-se de tudo. Um grande descanso.

- Óptimo arranjo - comentou o chefe com uma piscadela de olho.

- Grande conforto, menino. Depois do último infarto os médicos me mandaram ir piano piano.

- Os médicos, Cunha? Você acredita nessa corja? Quando tive minha operação eles me proibiram de tudo para sempre, ouviu? Tudo! Mulher, uísque, salgadinho, carne assada, vinho, sobremesa, café, cigarro, noites de farra... Me queriam pôr a papa de leite. E se eu não aguentasse me davam no máximo seis meses de vida. Aguentei uma semana. Desde então como, bebo, faço minhas farras, cumpro o dever com Tótó, fumo como dantes. Sabe você o que aconteceu? Nada! Ab-so-lu-ta-mente nada! Há cinco anos que isso foi e nunca me senti mais forte!

Enterrado na poltrona, Cunha seguia de testa franzida os movimentos de Artur que se levantara, despira o casaco, começava a desabotoar a camisa e ia tirar as calças. Eu sorri, sabendo o que costumava acontecer depois de um discurso daqueles, mas o sub não estava preparado para enfrentar uma barriga e um tronco onde terríveis cicatrizes ziguezaguevam por entre inchaços disformes.

- Apalpe, para ver! - mandou ele, ao mesmo tempo que batia com força, a demonstrar a saúde da carne. - Apalpe!

Cunha não quis apalpar. Disse que compreendia, e de facto aquilo tinham sido cortadelas de respeito.

- Por aqui me tiraram o rim - explicou Artur, seguindo a cicatriz com o dedo. - Esta foi do pulmão. Em Londres, quando tive minha apendicite e as coisas se puseram complicadas, abriram primeiro deste lado e me cortaram setenta centímetros de intestino! Daqui até aqui.

- Essas moças poderiam arranjar mais um cafezinho para a gente? -  perguntou Cunha, voltando-se para mim.

Esperei que o chefe se vestisse e, entreabrindo uma frincha da porta, pedi o café.

- Em Londres - continuou Artur, de novo sentado atrás da mesa - quando queriam me pôr a regime de bébé, pensei fazer testamento. E veja você!

- Os médicos têm isso - concordou o sub, curvando-se para puxar o açucareiro. - Dão uma no cravo, outra na ferradura. Se bem que eu não tenha muita razão de queixa. Nos meus infartos...

- Infarto não deixa cicatriz.

- Artur, por fora realmente não deixa, agora por dentro a gente não sabe, não é?

- Certo.

- Nos infartos tive um tratamento perfeito, mas meu problema são as pernas. Aí devo dizer que tanto no Brasil como na Itália os médicos me decepcionaram.

Apoiado nos braços da poltrona Cunha levantou-se a custo, começando a enrolar vagarosamente as calças:

- Vou mostrar a vocês.

Dos tornozelos aos joelhos as suas pernas eram dois galhos nodosos onde se torciam horrendas varizes azuladas, prestes a rebentar, grossas como dedos. Pusemos uma cara de circunstância e ele rodou para que víssemos por detrás, onde as varizes eram ainda piores.

- Tanto progresso na Medicina e dizer que não há remédio para isto! - suspirou ele, curvando-se para desenrolar as calças, esticando-as para lhes endireitar o vinco.

- Como você arranjou isso? - perguntou Artur, preocupado.

- Meu vício de papar menina em pé. Antigamente. Mas depois me proibiram e com os infartos só deitado, só uma vez por mês, piano piano, como já disse.

Seguiu-se um silêncio embaraçado. Artur procurou quebrá-lo oferecendo cigarros, mas nesse momento ouviu-se uma pancada discreta e a cabeça loura de Karel apareceu na frincha da porta, a lembrar que eram horas de ir buscar Dona Tótó.

O chefe mandou-o esperar com um gesto irritado. Tinham almoço na embaixada e a mulher estava no cabeleireiro, mas antes de se despedir queria discutir o problema do espaço. Com apenas duas salas ia ser difícil arranjar lugar para o sub.

- Na frente está tudo muito apertado e mudar as plantas seria tirar o lugar ao Karel - explicou ele. - Nesta não vejo jeito de pôr outra mesa, a menos que...

- Nem é preciso - interrompi eu - Como você a maior parte das vezes não vem de manhã, o Cunha poderia...

Ambos discordaram, o chefe afirmando contra toda a evidência que muitas vezes estava ali às nove horas. Cunha dizendo que de manhã não se sentia gente e nenhuma força o conseguiria tirar da cama antes das onze. Mas ele próprio já pensara como resolver o caso:

- Não é preciso mesa nenhuma em parte nenhuma. O expediente que houver eu despacho no hotel. E aqui o José fica de "oficial de ligação", porque acho que as moças não vão querer me visitar no quarto para a correspondência.

 

Nos meses seguintes quase não deixaria o hotel, temeroso de que, com o frio, lhe viesse um terceiro e fatal infarto. Fora os relatórios que eu escrevia e a resposta aos convites para festas e recepções, o expediente era nulo, mas isso não o impedia de me chamar quase todos os dias antes do almoço:

- Para um bate-papo, rapaz, um pouco de companhia. Não compreendo como você aguenta no meio deste povo sorumbático.

Era desagradável entrar num quarto onde a temperatura lembrava um forno e o ar espesso guardava todos os fedores do dia e da noite. Era penoso vê-lo arrastar-se numa camisa de dormir que lhe chegava aos joelhos, deixando à mostra as formidáveis varizes que ele às vezes enrolava em ligaduras. Era difícil respirar na fumarada dos cigarros. Mas que personagem!"

……….

Excerpto do conto O Sub.

in Os Lindos braços da Júlia da Farmácia – Quetzal, 2011.