sexta-feira, novembro 27

Fortín Linares

"Fortín Linares na minha lembrança: cabanas dispersas na margem do Pilcomayo, uma rua de casas, a fortaleza em ruínas, o quartel. Noites de negrume intenso, cortadas por gritos, assobios, sinais, às vezes um tiro. Barcos empenachados de fumo, a navegar contra a corrente. A parecer que voavam se iam rio abaixo. De longe a longe, a fazer surpresa, viravam a proa à terra e, com a sereia a apitar, encalhavam lentamente no lodo. Os passageiros desciam então por uma prancha mal assente que oscilava e rangia, homens de bigode pendente, revólver no cinto, que se demoravam na venda e partiam depois a galope, esporeando os cavalos. Se anoitecia o barco deitava âncora e nós, garotos, esperávamos pacientemente que se acendessem as luzes, excitados com aquele milagre. Metíamo-nos à água para ver mais de perto, imaginando festa, sôfregos que nos atirassem comida,gritando para que ouvissem.  Fortín Linares, Horqueta, Las Lomitas, San Camilo, Minas Cué. Chaco dum e doutro lado da fronteira. Guardas argentinos, severos. Soldados paraguaios, rotos e descalços. Cabanas sempre iguais. Uma cama, a mala, um canto para o fogo, às vezes uma panela, o chão de terra.

Quando os homens entravam eu corria para a margem, à espera do que minha mãe tinha prometido e demorava: a embarcação que nos levasse. Mas o Pilcomayo às vezes quase secava. O Bermejo, no Verão, desaparecia em pântanos. Em Minas Cué, Horqueta, Las Lomitas, nem sequer havia rio. Eu fugia então ao acaso,mas nunca para muito longe, ansioso que a voz me chamasse de volta. «Bobby! Roberto!» De Las Lomitas recordo o comboio. Mais alto que os barcos. Dentre as rodas da locomotiva saía um fumo branco. Minha mãe mandou-me que esperasse quieto e subiu primeiro, empurrando a mala, desaparecendo entre a multidão. Um minuto de pânico. Só sosseguei quando ela retornou, puxan-do-me pelo braço para dentro do vagão. Fugíamos. Depois dum tiroteio que durara uma tarde e a noite inteira, os cadáveres apodreciam há três dias, desmembrados pelos cães, enxameados de moscas, espalhando no ar um cheiro doce.

Memórias desconexas, datas perdidas, momentos que subitamente revivem, a parecer de ontem, deformando a noção do tempo, carregados ainda com os temores de então e a mês ma náusea.O ralho tinha começado diante da nossa barraca e aos poucos formara-se um círculo em torno das duas mulheres. Só minha mãe parecia indiferente, sentada à porta a fumar, à espera de improváveis clientes. Era por ciúmes. Estavam ainda nos insultos, dando passos em frente, passos atrás, virando-se as costas para logo se aproximarem, quase a tocar-se, os rostos desfigurados de raiva e ódio. A roda alargou-se para lhes dar campo, cada um pressentindo o que infalivelmente iria acontecer. Ambas se pareciam: em idade, tamanho, força e fúria. Minha mãe servia-lhes de comparação:—Grande puta!—Puta és tu! Desgraçada!—Tu! Mais puta, mais podre, mais galicada do que a Rubia! Sentados no chão comigo, os outros garotos riam consolados, davam-me cotoveladas a acirrar o brio que eu não tinha. Uma das mulheres apoiava ainda as mãos nos quadris, em desafio aos dedos da outra, já recurvos, prontos a ferir. Voltaram a afastar-se, chegaram-se, as unhas cravadas nas faces, abrindo arranhões fundos. Socavam-se pelos peitos, pela cara, procuravam os olhos, a querer espetá-los, das bocas corriam fios de sangue. Pararam um momento, exaustas, a arfar,  mas de repente, como se se tivessem adivinhado o pensamento, abaixaram-se, apanhando cada uma sua pedra, a avançar desvairadas. Os homens meteram-se de permeio e tiraram--lhas, afastando-as uma da outra. À pedrada não valia, porque se matavam. Os corpos chocaram com um baque surdo e rolaram no chão, desequilibrados, os braços e as pernas a procurarem freneticamente uma vantagem, um ponto fraco, as mãos envencilhadas nos cabelos, torcendo, puxando as cabeças. Morderam-se, mas logo se deixaram, aos urros de dor, uma a tentar estancar o sangue com um trapo, a outra caída de joelhos, atordoada, a roupa em frangalhos. Atracaram-se de novo, vagarosas nos movimentos, sem forças, outra vez presas pelos cabelos, descrevendo círculos às arrecuas. Alguns dos que assistiam começaram a ir-se embora, descontentes, desfalcados, fazendo remoques, que era melhor deitar-lhes água por cima, como se fazia aos cães. Numa finta de rapidez inesperada e que mais parecia um  mergulho, a que tinha os lábios inchados pelas pancadas enfiou a mão entre as pernas da outra, apertando com tal violên-cia que a mulher escancarou a boca para um grito que não saía, absorvendo o ar num estertor, a parecer que os pulmões se lhe tinham esvaziado. Porém, logo reagiu, a atacar da mesma maneira e durante um instante permaneceram estáticas, equilibradas, entrelaçadas, pondo ao léu coxas e nádegas, uma mão a puxar os cabelos da adversária, a outra amarrada ao pentelho. Os que se tinham afastado vieram a correr e nós, a garotada, levantámo-nos, a recear que elas nos caíssem por cima. Aminha mãe aproximou-se também e eu instintivamente me juntei a ela, a procurar abrigo. Por chalaça alguém tinha trazido um balde de água, logo esvaziado a pontapé pelos que não queriam que antes do tem po se lhes tirasse o gozo de ver como aquilo acabava.

O fim foi rápido, inclemente: a que estava mais perto de nós desprendeu-se com um esticão violento e, vitoriosa, ergueu no ar uma mão-cheia de pêlos donde escorria sangue, enquanto a outra rebolava no chão, uivando, a proteger a ferida com a saia. Como sempre, quando termina um espectáculo, a roda desfez-se aos poucos e a minha mãe voltou para casa, eu atrás dela. Mas a curiosidade pôde mais e tornei à rua. Um pequeno  grupo de homens discutia e ria às gargalhadas, atirando uns  aos outros o tufo de pêlos ainda presos à pele ensanguentada, a açular os cães para que lhe pegassem"

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in A Sétima Onda - Quetzal, 2017