domingo, novembro 29

O Destino pode e manda

Pouco importa que seja cansaço, aborrecimento, mudança de humor, há ocasiões em que o Cesário involuntariamente recorda certos episódios da sua vida, sobretudo aqueles que ainda hoje o deixam com a impressão de que se tivesse reagido conforme a sua natureza, tudo teria andado mais de acordo com os seus sonhos e maneira de ser.

De todos esses episódios o mais determinante foi de certeza o da noite em que depois do cinema e já à porta da casa dos pais, onde ainda morava, a Célia à queima-roupa e ao contrário das regras lhe perguntou se queria casar com ela.

Aquilo tinha sido mais do que inesperado, porque nunca a vira senão como amiga, mas também porque aos vinte e quatro anos a perspectiva de casamento não fazia parte dos seus planos, a única coisa que lhe ocorreu foi perguntar se por acaso estava grávida, descrente que pudesse ser dele, sempre cauteloso nas poucas vezes que tinham ido para a cama.

Não se assustasse, não estava grávida, era só que dos namorados que tinha tido apenas com ele se via a sonhar um futuro a dois e sentir-se capaz de dar o passo.

É esse o momento que agora inesperadamente recorda, enquanto ambos assistem na televisão à destrambelhada fala do Primeiro Ministro sobre o perigo do vírus, o número de mortos, de infectados, novas proibições, mais uns quantos avisos de catástrofe.

Continua a encarar o ecrã e a ouvir o político, mas uma parte de si mesmo parece ter-se separado, entra numa fantasia que permite escolhas no presente e no futuro, fabricando com elas relâmpagos de felicidade, dando resposta a perguntas que sempre evita fazer, certo de que se naquela ocasião em vez de vergar tivesse mostrado firmeza não se sentiria agora o meio-homem que com o correr dos anos Cecília fez dele: sem vontade própria, deixando-lhe as rédeas, às vezes fingindo de puto resmungão que contra vontade segue a mãe e sem remorso lhe deseja a morte.

- Não compreendi nada do que o Costa disse, nem das datas, nem do que vai mudar!

A voz de Cecília tira-o da sonolência, mas atordoado como está murmura qualquer coisa,  levanta-se, parecendo que lhe custa fazê-lo, pequena manha de que ela há vidas se apercebeu. O que agora a surpreende é que em vez de se apoiar no sofá como de costume, a fingir ou de facto à espera que as articulações se recomponham e a dor passe, aproxima-se a cambalear, no rosto uma expressão que lhe desconhecia e sem explicação lhe volta as costas.

Nunca ela ou qualquer de nós jamais saberá as vezes que nos matam em pensamento.