domingo, novembro 1

As linhas da memória

Têm mistério as linhas da memória, ocasiões em que se perde o fio à meada e por mais que se procure não se descobre a razão que de súbito nos leva a pensar nalguém que encontrámos uma única vez. No outro extremo estão aqueles casos de pessoas que com frequência recordamos, umas por amizade, outras pela bizarria da sua maneira de ser, dos seus tiques, ou porque um dia nos surpreenderam com a inesperada revelação de uma fraqueza ou malandrice.

Num tempo tão longínquo que quando me acontece recordá-lo tenho por vezes a ideia de folhear um livro de História, Madalena B. entrou uma tarde de repelão na minha vida, um pouco à maneira de quem força uma porta, saindo para sempre dela com um telefonema às horas mortas da madrugada seguinte.

Não sei de quem nem por que meios tinha conseguido a minha morada, mas muito de acordo com a sua maneira nem sequer usou o telefone para anunciar a visita, simplesmente tocou à campainha, fui abrir e vi-me diante de uma fúria que à laia de apresentação disse num tom seco que era a Madalena B. e exigia de mim o paradeiro do Guilherme Santana.

Cordato por natureza e difícil de impressionar, acenei-lhe que entrasse, estivesse à vontade, era um minuto para ligar a máquina e fazer um café, ganhava eu tempo para acudir a mais um aperto do "Guilhas", certamente uma das muitas encrencas de saias com que ele, malgrado a idade de avô, apregoava uma virilidade e feitos de Casanova.

Esquecendo o café que lhe tinha posto defronte e já no terceiro cigarro, esta Madalena não sofreria de perturbação mental, mas malgrado a minha boa vontade e paciência o seu desarrazoado não mostrava ponta por onde lhe pudesse pegar. No relato que debitava sem tomar fôlego, a figura do Santana ora aparecia ora desaparecia, e se um episódio começava no Funchal a páginas tantas estava ela a nomear um hotel em Madrid e o escândalo que lá tinham feito, porém chegado aí já eu me apercebera de que tipo era a madame.

Em nenhum momento me apetecera a interrompê-la, mas também ela parecia achar normal que lhe fosse devida a atenção inteira, até que como quem acorda e num tom de autoridade mandou que lhe revelasse o esconderijo do meu amigo.

Podia ficar descansada porque eu faria todo o possível, confiasse em mim. Mas intenção nula, casos do Santana davam chatice, já tinha esquecido a senhora quando de madrugada o telefone tocou e a ouvi anunciar em tom de vitória que tinha descoberto o "Tringalha".

- Quem?

- O Santana! Trinta e um de boca, uma pilinha de nada!