Agora que a festa vai começar, se acha que não tem tempo para ler aqui o excelente artigo de Paulo Tunhas no Observador, leia pelo menos esta parte:
"Eis aquilo que mereceu, durante estes anos, a oposição de Trump:
- Uma cultura que fomenta o medo de dizer o que se pensa. Não se trata apenas de um código destinado a impedir a expressão daquilo que é ofensivo e difamatório na nossa linguagem ou no nosso comportamento, mesmo à custa de uma certa hipocrisia destinada a preservar as aparências. A hipocrisia – como modo de ocultarmos aos outros, com o auxílio de uma máscara, alguns dos nossos pensamentos mais íntimos – tem um valor civilizacional e diminui os riscos da violência. Aristóteles, La Rochefoucauld, Kant, e até Shakespeare (Assume a virtue if you have it not, diz Hamlet à sua mãe) o mostraram de uma maneira ou de outra. Aqui, agora, a coisa tem uma dimensão mais funda. Não se trata apenas de interditar a expressão de certos pensamentos: trata-se de interditar os próprios pensamentos, algo que não era permitido sequer ao Soberano de Hobbes. É o totalitarismo possível na cultura contemporânea.
- A tese do chamado racismo sistémico ou estrutural. Um manto de culpa é lançado sobre todo e qualquer indivíduo pertencente ao grupo maioritário (branco) da sociedade. Por mais notória que seja a não emissão de propósitos racistas por parte de quem quer que seja, o racismo é suposto, por definição, estar sempre lá, e a não admissão do racismo é a mais eloquente das suas expressões. Uma senhora socióloga, Robin DiAngelo, construiu a sua reputação (e produziu um bestseller) com a sustentação desta tese, que tem o efeito paradoxal de absolver os verdadeiros racistas de qualquer pecado que lhes seja próprio, dissolvendo-os na necessidade do todo social.
- A presentificação do passado, por via de uma identificação do presente com este. O passado (esclavagista, por exemplo) é vivido integralmente, de corpo e alma, no interior do nosso próprio ser, como uma mancha nunca eliminável que nos é consubstancial. É esta abolição de toda a distância entre o presente e o passado que permite a destruição de estátuas por esse mundo fora e a concomitante cultura de cancelamento que na universidade, na rua e nos museus, promove a maldição a que são votadas figuras como David Hume, Darwin ou Churchill, entre muitas outras.
- A defesa da violência exercida por grupos que têm a sorte de estar “do lado certo da história”, se é que ainda existe história neste mundo em que toda a distância entre o passado e o presente foi obliterada. Black Lives Matter, Antifas e Extinction Rebellion aparecem, como por magia, inocentados de qualquer violência que pratiquem ou de qualquer intimidação que lhes apeteça levar a cabo, como, por exemplo, aquela que membros do Extinction Rebellion tentaram sobre o meu velho amigo Sir David Attenborough. Em contrapartida, a polícia é maciçamente encarada como uma entidade não só opressiva como criminosa, que, nas vozes mais radicais, deve ser desmantelada.
- A censura em nome do Bem. Com efeito, do Facebook e do Twitter aos tradicionais órgãos de comunicação, a censura adquiriu recentemente um prestígio que em tudo contraria o opróbrio em que saudavelmente foi tida desde há muito. Não é exagero dizer que há algo em tudo isto que faz lembrar a atitude face às blasfémias do fundamentalismo islâmico. Por razões civilizacionais, a radicalidade do ódio à blasfémia (paradoxalmente metamorfoseada em crítica do “discurso de ódio”) não encontra aqui os prolongamentos práticos que encontra no islamismo, mas, dada a dimensão que as coisas tomam, não excluo a possibilidade de um tal desenvolvimento, por mais remoto que possa parecer."