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A versão
neerlandesa desde texto foi radiodifundida por "Radio Nederland" em 2
de Janeiro de 2000
Uns trinta anos atrás, embora tivesse então alcançado há muito o que
se costuma chamar a idade do juízo, cometi o erro de escrever um livro de
reflexões sobre a Holanda e os holandeses.
No decurso do decénio que já aqui tinha passado,
amontoara, julgava eu, um número suficiente de observações para corroborar os
meus pontos de vista, e assim, com o
entusiasmo da ingenuidade e promovendo-me a juiz, desatei a escrever sobre as
muitas coisas que na Holanda me pareciam boas, senão excelentes, e sobre os
traços de carácter que nos seus habitantes se me afiguravam detestáveis.
Ao contrário da minha expectativa - eu supunha que o
veneno destilado me valeria meia dúzia de processos e, na hipótese pior, a
extradição pura e simples -o livro continua a vender-se e partes do seu texto
são ainda frequentemente citadas.
A quem não os conhece, ou conhece mal, semelhante
tolerância dos holandeses às críticas que lhes são feitas deve parecer suspeita
e indicar, pelo menos, uma tendência nacional para o masoquismo. Contudo, e
felizmente, assim não é, antes indica um grau de respeito pelas opiniões
alheias, mesmo as contundentes, que raras vezes se encontra noutros povos e
noutras latitudes.
Entretanto, ciente do erro cometido no passado - e agora
que levo aqui quase meio século de permanência - é de esperar que a minha visão
sobre o país e o seu povo tenha mudado.
De facto mudou, mas de modo diferente daquele que eu tinha previsto, pois as
coisas boas se tornaram ainda melhores, e no que respeita aquelas que então
julguei más, devo dizer que é a mim que cabe a culpa de então as ter visto como
tais. Já explico.
Num
fim de tarde de Março de 1956 arribei a estas paragens nórdicas que nunca antes
tinha visitado, supondo que dentro de duas semanas voltaria a Paris, onde então
vivia, e bem longe de suspeitar que
faria aqui poiso para o resto dos meus dias.
Para um jovem de vinte e cinco anos, nascido e criado em
Portugal, imbuído de cultura latina, a
Holanda era, em mais de um sentido, um país exótico e remoto. Além disso, fora
o vir de Paris, que considerava um paraíso, o chegar num dia de neve e neblina
deu-me de Amsterdam a impressão de que era cidade tristonha.
Devo
acrescentar que os primeiros anos da minha estadia não foram felizes e a
tendência que tenho para o pessimismo também não ajudou. Desse modo, antes de me dar conta, estava eu a barafustar
contra a Holanda e contra os holandeses, projectando nela e neles culpas,
defeitos e fealdades. Além disso, julgando-me original, eu ignorava ser apenas
mais um numa longa série de críticos.
Por razão
misteriosa, a Holanda costuma despertar emoções fortes em quem a ela chega e só
a poucos deixa indiferente. Uns adoram-na, outros sentem a urgência de fugir
daqui a sete pés. Os primeiros maravilham-se com tudo, desde os campos de
tulipas à forma dos moinhos, desde a pintura de Rembrandt ao desenho das
fachadas. Os azedos, esses logo no aeroporto ou na estação começam a resmungar
e maldizer: incomoda-os o frio, a
extensão dos pólderes, o cinzento do mar, a estranheza da língua. Enjoam da
comida e aborrece-os a cara das pessoas, acham os preços uma exorbitância,
perdem-se no emaranhado dos canais.
Esta última categoria de visitantes mal humorados data da
antiguidade e, tanto quanto se sabe, iniciaram-na os Romanos. Por volta do ano
57 antes de Cristo, ao alcançarem o delta formado pelos grandes rios que
desaguam no Mar do Norte, ao qual chamariam Insula
Batavorum (Ilha dos Batavos), logo eles se queixaram da humidade e de serem
mal recebidos.
Desde esse tempo não passa século sem que as virtudes e
os vícios da Holanda, a cor do seu céu e a fartura das suas águas não sejam
examinadas à lupa por escritores e políticos, diplomatas, jornalistas ou
simples viajantes.
Tanta insistência e tanta constância no observar e
criticar de um pequeno país poderá
surpreender, mas o certo é que, como já antes disse, ele a poucos deixa
indiferente.
O Padre António Vieira, por exemplo, escritor clássico da
língua portuguesa, celebrado em Portugal e no Brasil, ao vir aqui por três
vezes, entre 1646 e 1648, e ao reparar que os holandeses se deslocavam tão
facilmente na terra como na água, chamou-lhes anfíbios e pareceram-lhe gente de
maus fígados.
Outro português e também ele escritor, Ramalho Ortigão,
publicou em 1883 o seu livro ‘A Holanda,’ onde ao longo de mais de quatrocentas
páginas só se lêem elogios. Ele é a beleza das cidades, a limpeza das ruas, o
funcionamento democrático do governo, o conforto dos hotéis, a amabilidade das
pessoas, a riqueza dos bancos, tudo lhe parece fabuloso, idílico, exemplar e
perfeito. Vista através dos seus olhos, a Holanda parece uma espécie de
Shangri-La avant la lettre.
Como a lista dos simpatizantes e detractores se estende
por muitos tempos e raças, não me surpreenderá se um dia ouvir dizer que na
língua dos esquimós ou dos índios xavantes existem escritos que celebram a
formosura dos canais de Amsterdam e outros onde se desaconselha o hábito local
de consumir o arenque cru.
É como se o mundo inteiro se sentisse obrigado a ter
opinião sobre a Holanda. Franceses e italianos, espanhóis e ingleses (muitos
ingleses), alemães (muitíssimos alemães) gregos, turcos, indianos... Mal
respira este ar e encara esta gente, aquele que chega começa a tomar notas, e
Deus nos livre se jamais, devido a qualquer moda ou às facilidades da Internet,
vierem a ser publicados os milhões de palavras com que milhões de particulares
opinam sobra as flores e o queijo, as vacas leiteiras, os velhos mestres da
pintura.
E eu, na minha inocência, a supor que poucos se teriam
debruçado sobre a Holanda e os holandeses!
A desculpa que julgo ter, é que o que no passado escrevi
me dá a impressão de ter sido obra de um outro eu e feito numa outra vida.
Porque agora, no começo da velhice, quando o leio, e embora o não possa
repudiar, a surpresa que me causa é de tal ordem que logo aquilo me parece de
um estranho e dá vontade de sem demora começar a corrigir.
Porquê? quererá o ouvinte saber.
Pela simples razão de que, julgando que escrevia sobre a
Holanda e o seu povo, eu, inocente e jovem, estava apenas a escrever sobre mim
próprio.
O aborrecimento que me causava a monotonia do pólder, e
que eu supunha fosse universal, decorria apenas de que até então os meus olhos
só se tinham deliciado com montanhas. Depois, falador por natureza, custava-me
a aceitar o laconismo dos meus novos vizinhos, que respondiam sim ou não
quando, pelo menos, eu esperaria deles um discurso. E vindo do sol, doía-me o
mau tempo e o frio, que me davam a impressão (errada) de ser este clima pior
que o da Lapónia.
E imagine-se: os holandeses só comiam bacalhau fresco!
Desconheciam o bacalhau salgado! Odiavam o alho! Faziam cada dia, não duas,
como eu, mas apenas uma refeição quente! E mesmo essa, em vez de o ser à noite,
segundo a (minha) regra, comiam-na ao dar as seis horas!
Por ninharias assim, logo os cataloguei como
culinariamente bárbaros. Além disso, em vez de vinho, bebiam leite à refeição.
Leite! Atirei-lhes o anátema! Povo que se confortava com bebida tão insípida,
merecia ser excomungado, expulso para todo o sempre do grémio das nações
civilizadas.
Eram os holandeses vivíssimos no comércio, na indústria,
nas finanças? Primavam eles na Economia
e na Medicina, nos estudos da Física e da Astronomia? Davam cartas na ciência
de administrar um país? Eram superiores na agricultura, na pesca, na construção
naval, no arranjo do território, na aplicação das leis?
Sim, em tudo isso apareciam em primeiro plano. Mas
desconheciam o bacalhau salgado, bebiam leite à refeição, falavam pouco, não
gostavam de alho. Semelhantes miudezas, examinadas através da impertinência da
minha juventude, levaram-me a ser feroz.
Claro que os não insultei, pois o respeito que se deve ao
nosso semelhante mo impediria. Mas ri-me deles, fiz da zombaria o meu cacete,
fui cruel nas comparações. A leviandade com que então os descrevi, causa-me
agora, tarde demais, algum remorso. Infelizmente, como os nossos antepassados
romanos já sabiam, mas eu tarde demais viria a acreditar, verba volant, scripta manent, (as palavras voam, o escrito
permanece), e como o editor não me deixaria tirar dos escaparates um livro que
se continua a vender, recebo eu, pelas vias travessas do negócio, a paga do meu
leviano julgamento.
Entro numa livraria e logo o livro me encara, é quase
como se apontasse a dedo aos circunstantes: ‘Olhem! Ali vai o malfeitor!’
Mas pior que a eventual acusação de leviandade, o facto
do livro se continuar a vender, ser lido e mesmo citado, levantou ultimamente
em mim a suspeita de que o interesse que ele desperta nos holandeses, talvez
não seja motivado pela curiosidade de descobrirem o que deles pensa um
português, mas apenas porque lhes apetece rir. Que, aos seus olhos, os juízos
com que julguei molestá-los, não passam de tontarias cómicas, pois críticas
melhor fundadas e cumprimentos mais elegantes, já eles os receberam ao longo
dos séculos.
Metendo a mão na consciência, tenho de conceder: gostar
de leite e não apreciar o bacalhau nem o alho, não são razões válidas para
desqualificar um povo, mas simples diferenças de hábito. Mesmo essas, o tempo
generosamente se encarregará de ir fazendo com que desapareçam. Eles ainda não
comem bacalhau salgado, mas começam a apreciar o alho e já bebem vinho. Por
minha parte, se continuo a detestar o leite, verdade é que há muito só faço uma
refeição quente ao dia e as mais das vezes sento-me à mesa às seis horas.
Ao fim e ao cabo, pergunto-me, onde encontrei eu trinta
anos atrás, a autoridade para fazer julgamentos cortantes e ter opiniões
‘definitivas’ sobre a Holanda e os holandeses? Terá sido apenas pecado da juventude?
Penso que não.