Sabendo como os holandeses são fanáticos da marcha, no começo de 1996, com alguma inocência, meteu-se-me na cabeça que na Holanda poderia fazer alguma coisa por Trás-os-Montes.
Com a ajuda do jornal de Volkskrant, onde então semanalmente escrevia, produziu-se o necessário tam-tam, acorreram um pouco mais de mil pessoas preparadas para, a butes e dormindo em tendas, andarem dez dias por carreiros e atalhos os cento e vinte e pico quilómetros que separam Moncorvo de Miranda. Foi preciso fazer rifa para os lugares disponíveis e saiu a sorte a cem caminheiros. Com mais sete de apoio, camião com tendas, latrinas, cozinha ambulante, carrinha de apoio, tudo organizado à perfeição, deu-se começo em meados de Outubro ao que eu, parafraseando "A Grande Marcha" do camarada Mao, baptizei de "O Longo Trajecto" (Het Lange Traject).
A coisa deixou nome, plantou a longínqua província lusitana nas mentes batavas, resultou em dezenas de artigos e uns cinco ou seis longos programas de televisão.
Não vou historiar, recordo apenas estes episódios.
Todas as câmaras e aldeias de Moncorvo a Miranda foram generosas no acolhimento.
O povo do Felgar, onde se assentou o primeiro acampamento no recinto de Nossa Senhora do Amparo, excedeu-se nos comes e bebes, fazendo estourar também uma dúzia de bombardas em forma de boas-vindas. Desconhecendo o uso, e supondo que em terras meridionais por um nada se faz guerra, a maioria dos viandantes assustou-se de tal modo que, para acalmar, teve de carregar nos copos. Noite memorável.
Aqui em Estevais ficaram dois dias e duas noites, mas não serei eu a contar como se comeu, bebeu, dançou e se ouviram fados. Basta dizer que na manhã de partida, com beijos a abraços, lenços e braços a acenar, e um ou outro holandês não resistindo às lágrimas, a despedida teve o seu quê do Adeus à Virgem.
Em Sanhoane preparam o acolhimento de tal modo que até puseram idosas a fiar e a tecer linho, a cardar lã, a mostrar como se fazia queijo e não sei quantas outras artes. Ceia ao ar livre, como nos mais lugares. Mas que ceia! E que vinho! Grande gente, boa gente.
Foi também num dos últimos arraiais que uma das jovens e muito lindas holandesas do grupo me contou que, quase ao fim da festa, se aproximou dela um homem dos seus cinquenta e, no fraco alemão que um dia aprendera, quis saber se era casada.
- Não sou.
- E tem filhos?
- Não tenho.
- Namorado?
- Também não.
- A nossa aldeia é boa, e das maiores. Acha que era capaz de gostar de vir para cá?
- Para aqui? Não!
Do vinho ou da decepção o homem encarou-a estupefacto:
- Pois ainda se há-de arrepender! Olhe que eu tenho dois tractores!