domingo, setembro 6

Design (2)


(Cadeira Rietveld - 1919)

Com o seu sentido estético, o seu conhecimento e os seus sonhos, o designer forçosamente vive no futuro, tal como compete ao artista. Mesmo quando se inspira no passado, o seu objectivo situa-se sempre num amanhã mais longínquo que o nosso, cabendo-lhe criar as formas que nem sempre estamos preparados para aceitar ou compreender. Sensível às vibrações mais ligeiras do corpo social, ele prepara hoje a beleza futura, impondo-nos, regra geral, o contrário do nosso preguiçoso desejo. Agudiza a forma que preferimos redonda, alonga aquela que esperamos larga, e se ansiamos pelo pequeno formato o que sai das suas mãos parece atacado de gigantismo.

Esboçado a preto e branco para ilustrar o meu raciocínio, esse é, porém, o designer fictício que pensa e cria em situações ideais, liberto de constrangimentos.

No nosso mundo, infelizmente, o designer não se pode dar o luxo de criar para um futuro demasiado afastado. Tanto a sua sobrevivência, como o seu êxito e a aceitação do seu trabalho, apenas são possíveis na medida em que ele aprende as subtilezas do compromisso e se contenta em avançar a pequenos passos.

É talvez por isso que, em matéria de design, não assistimos a mudanças bruscas ou espectaculares, antes vemos que de uma época para a seguinte tudo flui devagar e, até certo ponto, previsivelmente. Embora eu não possua provas, apenas suposições, é provável que com o design se passe o mesmo que com a moda e, tal as saias, as formas para amanhã tenham sido "criadas" ontem, em reuniões onde nem o voto nem o gosto do designer são determinantes.

Vem daí mal a alguém? Não. Torna-se mais feio o ambiente em que vivemos? Antes pelo contrário, pois nunca a humanidade dispôs de semelhante abundância de formas práticas, eficientes e belas. A aceitação dessas premissas, todavia, não implica que me disponha a fazer sem crítica a apologia do design contemporâneo, ou aceite sem queixa as condições e as circunstâncias em que ele se me impõe. Se, por imprudência, os organizadores me tivessem dado carta branca, o catálogo inteiro não chegaria para enumerar os meus agravos e cuspir o veneno que, como consumidor tenho acumulado. Que o leitor ajuíze se a minha crítica não tem fundamento ou se, comparadas às suas próprias, as minhas queixas lhe parecem exagero.

Tomemos as embalagens. Eu, e isso já antes de me nascerem os dentes do siso, mantenho com as embalagens uma relação de desconfiança. Quer se trate de latas ou garrafas, botijas, boiões, caixas, frascos, dos inúmeros recipientes de plástico, de estojos, bisnagas ou cartuchos, eu tenho a impressão, não: eu tenho a certeza, que nos escritórios e estúdios onde as embalagens tomam forma,, se tramam conspirações com o duplo fito de me iludir e prejudicar. Exceptuando talvez a tradicional caixa de sapatos e a dos fósforos, quase todo o resto se me afigura um desavergonhado embuste.

Se é verdade que, quando a lei inequivocamente obriga, o volume ou o conteúdo correspondem às indicações em letra microscópica, a maior parte das vezes a relação entre a promessa visual da embalagem e a realidade do objecto ou produto que ela encerra é desoladora. E nem sequer me refiro às embalagens dos perfumes, exemplo frequentemente extremo: caixa grande, luxuosa, frasco pequeno de vidro grosso, conteúdo diminuto, preço astronómico. Tenho aqui uma dessas vulgares bombas de creme para a barba, cuja tampa ocupa um desnecessário, vazio, daí inútil e dispendioso terço do tamanho total. Razões estéticas? Creio que não. Antes para que, anestesiado pelos olhos, me seja indiferente pagar pelo vazio que a tampa esconde um preço talvez mais alto que o do produto.

E daí? pergunta a voz maliciosa que dentro de mim contradiz ou repreende cada vez que não resisto a tomar a pose de ofendido. De facto, como sempre acontece com as atitudes severas, a minha crítica só parcialmente é fundada, a minha verdade não passa da metade. E a decência manda que me reconheça culpado – meio culpado – quando a embalagem, tal a sereia mitológica, adormece os meus escrúpulos e me atrai com as suas tentações.

É que o designer descobriu há muito o meu inconfessado vício, a tibieza disfarçada por detrás da severidade do rosto: sob o verniz da aparência continuo criança. Por isso, mal entro num armazém, numa loja, torno-me irreconhecível para os outros e para mim próprio, a única força que me trava é a modéstia da carteira. Tivesse eu recebido uma fortuna em herança ou ganho um dos prémios maiores da lotaria, o interior da minha casa haveria de assemelhar-se aos bazares do Oriente. Nada se oporia então ao desejo doentio de possuir, apalpar, admirar a infinidade de formas, cores e materiais, a inventividade de que o designer dá prova. E ser iludido, talvez mesmo elegantemente roubado, que importa isso? Quase sempre a compensação nos é dada em formas de inegável beleza e expressões de surpreendente criatividade.

Quase sempre, repito, porque seria leviano esquecer que existem também as formas horrorosas, o trabalho mal feito, as combinações de cores que insultam, o atrevimento dos sem talento que se iludem e nos querem iludir, gritando serem eles a vanguarda do gosto e da arte. Mas que gosto? Que arte?

A moralidade não tem cabimento aqui e, como já disse, apenas quero fazer a minha crítica, cuspir veneno, não tenho o propósito de ser juiz ou polícia do designer e do comércio. Aliás, com que direito ou conhecimento o poderia fazer se me ressinto criança e, de vez em quando, mais que criança, um anjinho?

Num mundo verdadeiro e perfeito não haveria lei nem comércio, mas decerto também não existiria nele a beleza que conhecemos, já que, quanto a mim, ela nasce antes da ficção que da verdade. Ora como criança eu sinto pela verdade um medo comparável ao do escuro da noite, e a minha precisão de luz iguala a minha fome de sonho. Daí que, anjinho, me entrego de mãos atadas à manipulação conjunta do designer e do negócio. (cont.)