sexta-feira, setembro 4

Design (1)

Isto vai ser uma longa história. A chaleira que me queimou trouxe à lembrança um ensaio que, em 1987, me foi encomendado para o imponente catálogo ( 30 cm em quadrado, 3 cm de espessura, 3,5 kg de peso) de uma exposição sobre Design holandês, realizada no Stedelijk Museum de Amsterdam. Com o título "O Utente do Design e das Artes Gráficas", o texto fugia um tanto ao que seria de esperar, mas os organizadores, honra lhes seja, de bom grado aceitaram que assim fosse.








O Utente do Design e das Artes Gráficas


Entre os vários instrumentos, nem sempre utilizados ou úteis, que se acumulam na cozinha do nosso apartamento em Amsterdam, encontram-se três objectos – um púcaro de barro, um lampião de azeite, uma colher de pau – que eu por razões diversas trouxe de Portugal.

O púcaro é o mesmo por onde, numa infância longínqua nos anos mas muito presente na memória, eu bebia água em casa da minha avó Elisa. A sua forma milenar encontramo-la já nas representações mais antigas das ânforas do Egipto e da Grécia. Lampiões semelhantes a este alumiaram durante séculos as casas, os estábulos e os viandantes. A colher de pau foi talhada por um meu bisavô cerca de 1820. Obrigado a fazer à lareira, na presença da família, a corte à rapariga com quem depois teria catorze filhos, entreteve-se ele a desbastar com um canivete um pau de buxo, até obter a colher que seria usada durante várias gerações para provar o tempero da comida.

Desses três objectos a colher é o único que continua a servir: medimos com ela o arroz. Os outros tornaram-se adorno, são testemunhas do tempo passado. É curioso, porém, como eles se me impuseram quando, para escrever este ensaio, tentei ordenar as razões conscientes e descobrir os motivos ocultos que determinam as simpatias e antipatias que mantenho com as inúmeras manifestações do Design.

Peças utilitárias, concebidas e fabricadas por anónimos – do bisavô ficou a colher, perdeu-se o nome – o que nelas de imediato chama a atenção é o carácter funcional, aliado à simplicidade das formas. E embora eu de modo nenhum queira defender a premissa de que a simplicidade conduz à beleza, sou obrigado a constatar que o exame destes modestos objectos proporciona a descoberta de princípios de concepção que, simples e evidentes, com frequência são abandonados no Design contemporâneo, em favor de cabriolas que diminuem as qualidades estéticas dos objectos e dificultam o seu uso.

O púcaro é de facto uma miniatura do cântaro que, tal a ânfora da antiguidade, possui uma ou duas asas para facilitar a garra. A base estreita, além de permitir o seu transporte à cabeça, favorece grandemente – sabem-no os acrobatas – a obtenção do equilíbrio. Por sua vez o bojo adapta-se de maneira graciosa e ergonómica à linha da cintura, tornando possível que nos lugares onde isso é costume, ou necessidade, as mulheres transportem de cada vez à cabeça e na anca o equivalente a cerca de cinquenta litros de água. A combinação do bojo e da asa assegura ainda que, utilizando-se o pé como suporte, se possa verter o conteúdo com extrema precisão. Acrescente-se a isso o material, perfeitamente adaptado à finalidade do uso: além de uma relativa leveza a argila, graças à sua porosidade, contribui para o arrefecimento dos líquidos, o que nos climas meridionais é um factor importante.

O lampião, de folha-de-flandres e vidro, poderia servir como modelo de estabilidade e eficiência. Posto numa mesa ou levado na mão, o azeite do recipiente garante cerca de duas horas de luz suave e barata. Os arcos protegem os vidros contra os choques, e o calor da chama, que eventualmente queimaria os dedos, é reflectido pela chapa redonda sob a argola.

No tempo em que na nossa aldeia os lampiões eram, fora de casa, a única iluminação – dentro usava-se já o candeeiro a petróleo – recordo-me do assombro e da inveja que me tomava no cinema, quando os actores sacavam de uma pilha eléctrica, para mim então uma das expressões superiores do progresso. E hoje, rodeado de electricidade e pilhas alcalinas, não desejo retornar à candeia de azeite. Contudo, tenho de constatar que em matéria de preço, interesse do meio ambiente e questões de Design, o lampião suplanta a pilha. Além disso, tanto no uso como na simplicidade da sua forma única e secular, o lampião satisfazia verdadeiras necessidades, enquanto que a pilha eléctrica, apresentada em variadíssimos modelos, materiais e cores, apenas esporadicamente é útil, fornecendo um conforto quase desnecessário numa civilização que de facto desconhece o escuro.

Comparada ao lampião e ao púcaro, a colher de pau destaca-se pela extrema simplicidade. Facilmente imagino o antepassado que a cortou, tanto mais que me sentei nos mesmo escanos que ele, diante da mesma lareira. E, criança, nunca me cansava de ver como os homens ocupavam os longos serões de Inverno, fazendo brinquedos de madeira com as suas navalhas toscas, esculpindo bengalas ou, com paciência infinda, desbastando num toro o que depois seria uma saladeira.

Designers no sentido primário, incapazes de requinte, esses homens conheciam apenas a aliança entre a forma e a função, e isso apenas na medida em que uma e outra permanecessem simples.

Esta colher, todavia, é já como que um segundo passo: as curvas permitem mantê-la horizontal em relação ao conteúdo da panela e, simultaneamente, evitam que a mão se queime no vapor. O material, por sua vez, não poderia ser melhor escolhido: além de abundante na natureza, a madeira de buxo tem a particularidade de ser extremamente densa e dura, o que a torna singularmente apropriada para este género de implementos domésticos.

Feita esta excursão ao passado e às formas simples, obrigatório é tomar outro atalho, não vá o leitor colar-me o rótulo de simplista nostálgico. Além de inexacto seria injusto supor-me um espírito povoado de noções medievais, ou fazer-me enfileirar entre os rabugentos da simplicidade, capazes de considerar o ângulo recto um excesso de fantasia. Por outro lado e razões óbvias, é facto que o meu ponto de vista, o meu interesse e o meu apreço, não vão de par com os do designer, menos ainda com os do comércio, elo poderoso na longa cadeia que leva do criador de formas ao utente de objectos, instrumentos e utensílios. (Cont...)