Quando aponta ao visitante o armário a que chama a sua biblioteca, o senhor Matias faz uma curta pausa, a dar tempo que se leiam os títulos das lombadas e se aprecie a beleza das encadernações.
Retira depois um grosso tomo em marroquim vermelho com letras douradas, e segura-o nos braços como faria a um bébé:
- Veja-me isto! Uma História de Portugal como nunca se voltou a fazer! (*)
A História de Portugal é para o senhor Matias um inesgotável tema de conversa e fonte de sabedoria. Pouco importa o tema ou o problema, o caso ou o sentimento, ele em tudo descobrirá semelhanças para relacionar seja o que for com as quatro dinastias, os feitos de Vasco da Gama, a coragem de Geraldo Geraldes o Sem Pavor, a traição de Leonor de Freitas, o Brasil, as riquezas que perdemos, a passarola do padre Gusmão...
Com exemplos do antigamente na ponta da língua, ganhou fama de homem de muito saber. Actualmente preocupa-o menos a crise financeira que a antiga ameaça que para nós é a Espanha.
- Porque oiça! – estende o braço com o gesto brusco do espadachim que ataca o inimigo – Ninguém quer saber, o governo não faz caso, mas a verdade é esta: a história repete-se! Sempre se repete! É ou não é?
Aceno o meu acordo, ele recolhe o braço, tosse, chama a mulher a dias para que lhe traga um copo de água.
- Ultimamente seca-se-me muito a boca. Mas como estava a dizer, cá na minha os espanhóis vêm um dia por aí abaixo e... zás! – num gesto largo a sua mão decepa a cabeça de Portugal.
É esse o seu grande medo. Tanto se deixou entranhar por ele que, consultando mapas, prevendo os locais de invasão, vive na certeza de que a hora nefasta não demorará.
- 1580, meu amigo! Lembre-se de 1580!
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(*) Refere-se ele à vulgarmente chamada “História de Barcelos” dirigida por Damião Peres e editada pela Portucalense Editora, Barcelos, em 1928. Originalmente em sete grossos volumes (22 x 29 cm), aumentada em 1937 com um volume de índices, e em 1954 com um volume de suplementos.