São coisas que acontecem. Um dia de Setembro de 1990 pediram-me para deitar falação no encerramento de um simpósio na Universidade de Leiden.
Encontrei o texto há muito esquecido, li-o e entristeceu-me. Porque se alguma coisa muda em Portugal, muito continua imutável.
Os organizadores deste simpósio sobre “A imagem do estrangeiro na literatura ocidental e não ocidental” devem ter achado que, juntamente com a imagem, seria interessante apresentar aos participantes um espécime vivo de um estrangeiro ligado à literatura. Daí a justificação da minha presença.
Como complemento aos estudos científicos e às discussões do simpósio, talvez tenha alguma utilidade contar algo da minha situação pessoal como indivíduo e escritor presente numa cultura alheia. Sem malícia, nem intenção de abusar da paciência de ninguém, pareceu-me que a melhor maneira seria levar-vos a participar num breve experimento de alienação..
Esse experimento teve já o seu início no momento em que comecei a falar, pois em vez das frases polidas pelo trabalho de um tradutor competente, o que ouvem agora é a tradução que eu próprio fiz dum texto escrito em português.
Para vós a sensação estranha de ouvir maltratar a vossa língua. Para mim a sensação incómoda de involuntariamente a maltratar. O sentimento de experimentar algo que só em parte e irregularmente parece correcto, e ao mesmo tempo uma indefinível impressão de insegurança. A desagradável dicotomia entre o que se deseja dizer e o que não se consegue exteriorizar. O sentimento de que cada palavra mal pronunciada, cada palavra empregada de maneira imprópria, é um passo em direcção ao abismo: aquele que, invisível aos outros, se abre dentro de nós próprios, e onde as quedas nunca são fatais, mas sempre dolorosas.
A certeza de usar de maneira incorrecta a língua do país em que vive, é para o estrangeiro, juntamente com o medo de um dia vir a ser incapaz de usar correctamente a sua própria, uma tortura de todos os momentos. Se o estrangeiro é simultaneamente escritor, essa tortura e esse medo podem tomar proporções de verdadeira psicose.
Fora casos excepcionais como os de Conrad ou Nabokov, capazes de se implantar tão profundamente na língua e na cultura estranha que nela ocupam lugar de destaque, o destino corrente do estrangeiro na sociedade que o acolheu é o de se sentir num estado de quase permanente desequilíbrio.
Esse desequilíbrio não é apenas causado pela pela diferenças do idioma, ou pelos obstáculos da fonética, mas também por todo um conjunto de factores em que o humano e o social constantemente mudam de forma e valor.
Do desequilíbrio vem a insegurança. Mesmo que do ponto de vista intelectual a sua situação pareça confortável, ou realmente o seja, a insegurança é a característica proeminente da condição de estrangeiro.
O chão que pisa é sempre inseguro. Ao contrário do viajante, que com facilidade pode esquecer as suas pégadas, o estrangeiro é constantemente confrontado com elas. Nenhum dos seus passos é dado sem risco, mesmo que esse risco seja apenas o do ridículo.
A insegurança do estrangeiro contribui ainda para que a visão que tem da realidade que o rodeia conduza a uma deformação especial. Seres e fenómenos são por ele vistos através de bifocais em que a estranheza e a simpatia se não separam nitidamente, como o longe e o perto, mas surgem tal imagens enevoadas e sobrepostas.
Daí que a expressão “É-nos posto um espelho defronte”, usada frequentemente pelos holandeses para qualificar a sua relação com os estrangeiros que escrevem sobre este país, sempre me pareceu inadequada.
Porque o estrangeiro não coloca, nem pode colocar, os holandeses defronte de um espelho, onde, como por mágica, surgiriam as suas muitas qualidades e os seus poucos defeitos – eu suponho que esperavam ouvir o contrário. O que o estrangeiro de facto vê são os reflexos enevoados e sobrepostos de si próprio num espelho holandês.
O que agora digo não contradiz de forma alguma o que tenho escrito sobre os holandeses, nem é cortesia a que me sinta obrigado aqui e neste momento. Isso traduz apenas a convicção de que, com espelho ou sem ele, quanto mais tempo vivo na Holanda, mais me vou descobrindo a mim próprio, e menos seguro me sinto da justeza da minha visão sobre os holandeses e o seu país.
Embora não os queira importunar por mais tempo com o decifrar das minhas palavras, também não é meu intuito deixá-los com a impressão de que o estrangeiro em geral, ou este em particular, apenas conhece temores e incertezas.
De certo modo a condição de estrangeiro oferece também vantagens. Hoje em dia quase nada o obriga a assimilar-se ou a participar. Ninguém o impedirá de passar a vida inteira na posição que, para o individualista, é quase ideal: a do outsider inside. E a vida em seu redor sempre lhe oferecerá mais possibilidades de surpresa, divertimento, irritação ou raiva, do que aquela que viveria no ambiente aconchegado do seu país de origem.
Talvez estranhem, mas para aquele que consegue ultrapassar os inevitáveis artritos e contratempos do início, a condição de estrangeiro pode igualar o sentimento de prazer de longas férias, acrescentado dos estímulos de uma éducation permanente.
Tem-me sido perguntado com frequência, sobretudo agora que cheguei à idade do descanso, porque continuo aqui, em vez de regressar ao sol e às paisagens idílicas do meu país. Creio que, inconscientemente, a minha resposta tem sido sempre vaga. Porque a verdade custa a dizer: é que dói menos ser estrangeiro numa sociedade que se aprecia, do que viver naquela que, embora nossa, nos fere pela injustiça.