Digam-me lá com que cara se ouve
um amigo como o Pina, jurar a pés juntos que há meses, quase sem falha às sextas
de madrugada, acordava sobressaltado e, o tempo de um relâmpago, noutras
ocasiões dois ou três segundos, via surgir junto do guarda-fato um vulto que no
aspecto tinha qualquer coisa do traje dos pauliteiros de Miranda ou dos
evzones, aqueles soldados gregos que vestem saias, parecia encará-lo como se
lhe quisesse falar, deslizava para a porta da varanda e sumia.
Se isso tivesse acontecido logo
depois que enviuvou era capaz de julgar que teria a ver com a Lisette, seria
ela ainda a persegui-lo, pois os quatro anos de casamento tinham sido um
inferno, ambos se perguntando que poder diabólico entrara a funcionar para que
se unissem dois corpos e duas almas que, finda a paixão, tinham vivido em constante
pé-de-guerra.
Confessa que não sentiu pena
quando lhe telefonaram a dizer que ela tinha se tinha despistado numa curva do
IP2 e falecera na ambulância.
Houve depois uns problemas com
os sogros, gente simples do Minho emigrada em Bordéus, a quem se metera na
cabeça que queriam herança. Advogados, intimações, ameaças, uma vez teve de
chamar a Polícia, mas desde aí, provavelmente convencidos de que não iriam
vencer, deixaram de o importunar, era caso arrumado.
Assim pensava, até que recebeu
uma carta sem remetente, o seu endereço escrito numa caligrafia tosca e contendo
apenas um trapo manchado do que não saberia dizer se era sangue ou tinta.
Aquilo só podia vir dos “franciús”,
não ia ligar, já lhe custara demais esquecer tal gente, mas tudo mudou quando
numa visita à tia Judite falou do envelope, julgando que gracejava, e a viu
transtornada, exigindo que se apressassem, era urgente irem à casa neutralizar
as energias negativas que lá tinham entrado.
Uma vez chegados a tia começou às
passadas dum lado para o outro, nuns resmungos e a parecer que fazia invocações, diz ele que só
vendo se acreditaria que uma mulher franzina tivesse força para mudar sozinha o
lugar dos móveis.
Virou a cama ao contrário,
mandou-lhe que tirasse o espelho, o cadeirão e a arca não podiam ficar ali, as energias precisavam
de ter o corredor livre. Se não desse certo teria de vir alguém que soubesse
mais de Feng shui.
- E deu certo? – perguntei, fingindo
interesse.
- Deu e não deu. Aquilo pelos
jeitos sumiu, mas tenho de me calar, porque a tia acredita mesmo no Feng shui e
diz que a minha casa é um perigo. Por isso que a venda e ela dá-me a que tem no
Campo de Ourique.