sábado, novembro 2

A síndrome de Korsakov


Desde que enviuvou e vive sozinho acontece-lhe recordar o que antigamente só de longe a longe lhe vinha à memória, o hábito que o pai ganhara um tempo depois de chegar à reforma: tomado o pequeno-almoço despedia-se à pressa, e resmungando qualquer coisa sobre um encontro, corria a apanhar o primeiro eléctrico que passasse, só voltava à noite. Dizia-lhes que gostava de ir pela cidade e se surpreendia com tanta coisa que havia mudado, bairros inteiros onde antes havia baldios, ruas que desconhecia, prédios enormes.
E de repente aquele choque. Talvez o fizesse há muito, mas ninguém dera conta ou suspeitara, tanto mais que não era homem de excessos, nem o seu comportamento se tornara diferente.
Há de facto famílias em que se vão mantendo as aparências, mas na realidade cada um é uma ilha e enquanto não houver zangas sérias ou interesses opostos a indiferença passa por harmonia. Para ele, então ainda solteiro, para a mãe e a irmã divorciada que com eles vivia, a harmonia terminou um anoitecer, quando já estavam à mesa para jantar, irritados pela demora do pai, e do hospital telefonaram a dizer que se apressassem, era urgente, tinha havido um acidente e o estado em que o senhor se encontrava era grave.
Demoraram a encontrar um táxi, com a agitação em que iam enganaram-se nos corredores do hospital, e quando finalmente descobriram onde estava esperava-os uma surpresa: envolto em ligaduras como uma múmia, só tinha livre a cabeça e o braço direito. Sorria-lhes, agitado, rebolava os olhos, perguntou quem eram, e sem esperar pela resposta contou-lhes que estava ali a recuperar de um acidente na fábrica onde era engenheiro, a mulher e os filhos deviam chegar a qualquer momento, já os tinham avisado.
A mãe chorava, ele e a irmã sentiam-se desorientados, olhavam para a enfermeira que não tinham visto entrar, perguntando-se há quanto tempo estaria ali.
- É a síndrome de Korsakov – sussurrou ela. – Uma infelicidade, o excesso de álcool… De certeza bebe há muito tempo.
Sobressaltaram e ele ia falar, mas a mãe adiantou-se, com o tom severo de quem se sente insultada: - Não pode ser! O meu marido não bebe! Nunca bebeu!
A enfermeira encarou-a um instante, abanou a cabeça, parecendo hesitar entre a irritação e a piedade, por fim dirigiu-se a ele e à irmã:
- Deve beber há vidas. E de uma maneira…
- Nunca o vimos bêbedo - disseram ambos.
- Pode ser. Mas mesmo se o carro o não tivesse atropelado tinham-no trazido para aqui. Vai entrar em coma e é o fim. Uma tristeza.