O Futebol não é a minha paixão, mas pela força das circunstâncias vejo-me de longe a longe obrigado a ver um jogo, a ter opinião sobre o que vejo, e a escolher equipa da minha simpatia. Bico-de-obra para o Portugal-Holanda do próximo domingo, porque ganhe quem ganhar ficarei sempre com pena.
Numa ocasião idêntica foi escrito este texto:
Numa ocasião idêntica foi escrito este texto:
"Viva o Porto!"
Dezembro de 87. Vinte e cinco anos, mas a recordação ficou.
Frio, meus senhores! Frio como não lembro de jamais ter sentido. O termómetro indicava
oito abaixo de zero, mas o que os aparelhos mostram nem sempre se compara ao
que a gente sente. E as vinte mil pessoas regeladas que tinham começado a
encher o Olympische Stadion de Amsterdam, cada uma fazendo intimamente
promessas ao santo da sua devoção para que lhe favorecesse o clube, iam
encolhendo aos poucos, perdendo a estatura. Matulões de dois metros pareciam
encurtar de um terço e o senhor José Ferreira, do bairro da Ribeira, no Porto,
sentado ao meu lado, afirmou que um gelo assim era ruim, até podia haver
mortes. Que os "nossos" provavelmente não iam aguentar. A prognose
afigurou-se-me razoável, tanto mais que eu próprio parecia ter perdido já o uso
dos braços e das pernas.
Cabe fazer aqui uma confissão: a falar verdade nunca vejo
futebol, já que aquele que habitualmente vejo sentado diante da televisão, no
conforto de minha casa, pouca semelhança tem com o espectáculo ao vivo. São
imagens de conserva, uma diferença de sabor maior do que entre a sardinha
fresca e a de lata.
Há setenta anos, no Porto, o futebol era coisa familiar. Não
se jogava em estádios mas em campos com bancadas de madeira, enquanto os
espectadores comiam as suas merendas e bebiam vinho e pirolitos. Num domingo de
grande festa meu pai levou-me a um Porto-Benfica, para que eu visse ao vivo o
famoso "Pinga".
As recordações desse dia são nevoentas. Lembro-me de me terem
oferecido um galhardete e um distintivo que usei durante anos na lapela. Depois
a vida tomou as suas muitas andanças, deu voltas e reviravoltas. A televisão
nasceu, cresceu, passou a trazer-nos o futebol a casa. Primeiro, naquele preto
e branco que parecia uma animação das fotografias do jornal. Depois em cores
bonitas demais, falsas demais.
Foi talvez o cansaço da artificialidade e a nostalgia desse
longínquo domingo da infância que me levou ao Olympische Stadion.
Pequeno esforço para quem como eu vive perto. Grande esforço
para o senhor José Ferreira, que do Porto à Holanda tinha passado dois dias no
comboio e estava ali a tiritar comigo, queixando-se do frio, do hotel, da
comida, dizendo que não aguentava. Garantindo que os "nossos" também
não iam aguentar.
- Sabe que nos últimos dois anos houve três Porto-Ajax e os
holandeses nunca meteram um golo? Nem sequer um?
Eu não sabia, mas ele garantiu que era verdade. O seu receio
era que o frio viesse estragar uma vitória tão bonita.
Do jogo não falarei. Setenta anos de ignorância do futebol ao
vivo não se apagam num dia. Mas também não é preciso que fale. Toda a gente viu
e ressentiu. No dia seguinte os jornais holandeses só tinham elogios e um deles
pôs no cabeçalho: "Rui Barros, um pequeno que se vai tornar grande."
Outro cabeçalho: "Um Porto superpoderoso respeita a dignidade dos garotos
do Ajax". Belas reportagens de que os "nossos" se poderiam
justamente orgulhar, unânimes nos elogios. "Os jogadores do Porto realizam
o paradoxo de serem bulldozers com a
elegância de bailarinos". "O gigante Geraldão, 1,92 m, 92 kg de peso,
assustou Bosman". "Rui Barros, um fedelho de pouco mais que metro e
meio, mas que nada parece poder parar. Impressionante!"
No café, esquecido o frio da noite anterior, o senhor José
Ferreira pede que eu traduza mais devagar, porque quer escrever tudo direitinho
como deve ser. E já agora, se não me importo, ponho o meu nome e direcção por baixo,
porque só assim é que os amigos lá na Ribeira vão acreditar.
Os jornais holandeses embrulha-os ele cuidadosamente num saco
de plástico e caminhamos para a estação. Pena tem de não ser homem de posses.
Se lhe viesse uma lotaria iria com os rapazes para toda a parte, não os
largava.
Mas temos a televisão - digo eu para o confortar, esquecido
de que as cores são enganosas, bonitas demais, e nada pode substituir a
realidade.
Abraçamo-nos. O comboio que por Paris o levará em dois dias
até casa, está quase a partir.
Abraçamo-nos mais uma vez. Fazemos a promessa solene de que nos voltaremos a
ver para beber juntos o carrascão da amizade. Ele abre janela da carruagem,
vejo-o agitar inesperadamente uma bandeirinha azul e branca e gritar com as
lágrimas nos olhos:
- Viva o Porto!
A emoção paralisa-me um instante, o comboio passa, ganha velocidade, a
bandeirinha acena já longe. O meu grito perde-se na distância e no ruído, mas
ressoa no coração: - Viva a gente do Porto!
………….
Nota:
escrito em 1992 este texto encontra-se em Mazagran – Qutezal, 2012.