sábado, janeiro 4

Urologia

 

Veio visitar-me com o pretexto de que não nos víamos há tempos. Conversámos sobre o calor, sobre a rapidez com que os anos passam. Em vez de um segundo copo de vinho branco que lhe ofereci, disse que se eu não me importava preferia cerveja. E como se a minha breve ausência na cozinha o tivesse encorajado, quando me voltei a sentar perguntou-me à queima-roupa se eu já tinha sofrido de impotência.

- Felizmente não. Ainda não.

Os sintomas começara ele a senti-los há muito, mas diminutos e irregulares demais para lhe causarem preocupações. Dizia-se que talvez fosse cansaço, alguma indisposição, a consequência dos saltos de humor a que ninguém escapa ou, sabe-se lá, o primeiro sinal do pêso da idade. E num compreensível reflexo de auto-defesa, mal o sintoma passava esquecia a ameaça. Até ao dia em que teve de enfrentar a realidade.

Com o choque da constatação veio o pânico, o sentimento de desvario de que o mal que o atacava não se limitava ao sexo, mas abrangia uma parte maior do seu corpo, lhe tocava aqui e ali o espírito. Fisicamente tinha a impressão alarmante de ter sido amputado, mas pior ainda era a ausência total de sensações.

O médico auscultou-o, provocou reflexos, fez perguntas pertinentes, apertou-lhe a barriga, percutiu nas costas, arrepanhou-lhe as pálpebras, examinou-lhe a boca.

Assim à primeira vista não descobria causa física ou orgânica e por isso, disse, ia remetê-lo ao urologista. Sabia ele que muitas vezes a impotência tinha uma origem psíquica? Sabia sim, mas o sabê-lo não era conforto, antes aumentava a sua preocupação.

No hospital o urologista anotou distraidamente os dados pessoais, perguntou-lhe se sofria de qualquer doença, se tomava drogas, se fumava, se bebia em excesso. A tudo que não.

- E como está a hidráulica?

- A hidráulica? - O homem teria endoidecido?

- Sim, a hidráulica, a tubagem do aparelho. A erecção matinal funciona?

- Às vezes.

- Óptimo. Então não se preocupe, isso vai passar - e sem mais tinha-o despedido.

Bebemos em silêncio, mas se bem compreendo a expressão do seu rosto ele espera a minha pergunta:

- E então, passou?

- Não sei.

- Não sabes?

- Não. Não me atrevo a tirar a prova.

 

sexta-feira, janeiro 3

A Bélgica

 

Porque do convívio nasce a imitação, é inevitável que eu, português com cinquenta e tantos anos de Países Baixos, partilhe algumas das noções, clichés e atitudes protectoras que os holandeses possuem e adoptam em relação aos belgas. Mas ao mesmo tempo que vivo ofuscado pelas grandes coisas holandesas - que vão, como se sabe, do esplêndido queijo ao génio de Van Gogh, e da luta contra o mar até à segurança dos seus bancos e a variedade das suas flores - guardo no coração uma nostalgia secreta pelo que, num passado longínquo e por acaso, me foi dado aperceber dos belgas, e me pareceu então uma maneira particular de encarar a vida. Talvez que um dia, rememorando e arranjando a mistura caótica de impressões e peripécias desse tempo, eu descubra aí material para uma novela.

Todavia, antes de deitar mão a semelhante empreendimento, terei pelo menos dois obstáculos a vencer, os quais, embora diferentes, contribuem para que o conhecimento que tenho da Bélgica e dos seus habitantes não seja isento de preconceitos.

Ao primeiro desses obstáculos já aludi acima: não se vive impunemente exposto durante três décadas à visão holandesa do reino da cerveja, do mexilhão e da batata frita. E se as anedotas que os holandeses atribuem aos seus vizinhos, não se comparam em refinamento venenoso às que os brasileiros debitam sobre os portugueses, elas bastam para a criação de dúvidas e suspeitas.

O que sei da Bélgica não passa, de facto, de impressões em segunda mão, paisagens enxergadas através duns óculos (holandeses) de empréstimo. Assim, involuntariamente, se torna difícil o primeiro contacto. Olha-se com desconfiança o gendarme, não se toma a sério o dinamismo de Antuérpia, julga-se ser Bruxelas aquilo que ela só parcialmente é: a capital de uma das menos úteis actividades humanas, a burocracia europeia.

Felizmente, no eldorado de televisão e turismo em que vivemos, mais fascinados pelos países dos outros que pelo nosso próprio, nenhum desses preconceitos resistirá ainda muito tempo. Não deve demorar o dia em que a compreensão das anedotas sobre os belgas necessite notas de rodapé, e a reputação dos bancos holandeses se não diferencie da dos seus concorrentes. Desse modo nos iremos tornando mais semelhantes uns ao outros, mais cinzentos, mas também mais inclinados a desculpar e compreender.

O segundo obstáculo para escrever sobre os belgas existe somente na minha imaginação, motivo que o tornará mais duro de vencer. As suas raízes enterram-se impressões longínquas. É a minha imagem da Bélgica nos anos da infância: a dos folhetos sobre um Congo cheio de leprosos, missionários barbudos descendo em Lisboa dos paquete da África, as primeiras leituras de Maeterlinck, os romances sombrios de Van der Meersch. É, no liceu, a voz dramática do professor, contando que as relações entre Portugal e a Flandres eram tão remotas, que um documento de 1194 narrava o naufrágio de um navio de Lisboa que se dirigia a Bruges carregado de madeira, melaço e azeite. Que aí e em Antuérpia já nesse tempo existiam, e continuariam a existir durante séculos, "nações" portuguesas, conceito que ele se não deu ao trabalho de explicar e deixou em mim uma desconfiança que só muito tarde veio a desaparecer, quando descobri a palavra "natie" no telhado de um entreposto de Antuérpia.

É também a recordação dos homens emaciados e precocemente velhos que tinham lutado na guerra de 14-18, caminhando devagar nos jardins públicos, atacados duma tosse assustadora: os "gaseados da Flandres", como lhes chamava o povo . Para mim, criança, a Flandres era então um lugar de morte. Mas quando por lá passei a primeira vez, o lugar não correspondia ao nome: não vi ruínas, em parte nenhuma encontrei trincheiras ou destroços.

Assim, por estranho paradoxo, a Bélgica é um país que primeiro, e em grande parte, aprendi a conhecer nos livros e por ouvir dizer. Depois, quando finalmente o visitei, já de tal modo se me tinha deformado a visão que esse conhecimento - a minha "realidade belga" - nem na aparência corresponde ao original. Por tais razões e outras menores, a Bélgica resta para mim incógnita, longínqua e nostálgica como a Manchúria. Talvez só no dia em que escrever sobre ela, eu consiga rasgar o nevoeiro que entre nós se interpõe, e fazer com a minha ficção o exorcismo da sua realidade.

 

 

quinta-feira, janeiro 2

Os medos de então

 

Na minha infância o sobrenatural ainda existia e amedrontava. Ocorriam aparições. Os jornais relatavam milagres, publicavam o retrato de faquires enterrados vivos durante trinta e seis dias, e  estigmatizados que sabiam a data do fim do mundo. Nesse tempo o Diabo mortificava os que com ele tinham pactuado, e a água de certas fontes curava a cegueira, o reumatismo, limpava o sangue - se bebida em jejum - corrigia os adúlteros.

Havia vizinhos que tinham sido salvos de despenha­deiros por anjos de faces radiantes. Na escuridão de algumas noites ressoavam os gritos das almas penadas, tão dolorosos e cheios de mistério que levavam os cães a uivar e as pessoas a benzer-se. Apareciam no céu clarões vermelhos que, diziam os anciãos, prenunciavam as labaredas do inferno.

O mundo era maior do que hoje. Na África, no Pólo Norte e junto das crateras dos vulcões, havia monstros que comiam gente. A professora assustava-nos sem querer, dizendo que na China viviam 400 milhões de chineses, esfomeados e rabiosos - ele escrevia um 4 e enchia o resto do quadro com zeros - se o globo terrestre parasse de rodar ou mudasse de inclinação - "Mesmo só um poucochinho, um décimo de grau!" - cairíamos todos para cima!

 

Longe de tudo, ligada ao mundo por um caminho estreito e acidentado, perdida numa serra onde só raramente se aventuravam os tendeiros e os pedintes, a aldeia era desolada. Sobretudo no Inverno, quando escurecia cedo e as noites pareciam infindas. As mulheres e as crianças ficavam ao serão, os homens iam para a taberna jogar, emborrachavam-se lentamente, aquecidos pela lareira e pelo vinho, excitados pelas histórias dos medos antigos, falando dos negócios fabulosos com que os ciganos enriqueciam.

Alguns recordavam os anos da tropa, o temor de embarcarem pela primeira vez no comboio - que realmente ia mais depressa do que um cavalo a galope. E falavam da caça, das colheitas, das feiras de ano, da doença que podia matar as cabras.

Ao tocar das trindades bebiam mais um copo, davam as boas-noites e saíam aos bordos, ouvia-se na calçada o eco dos passos incertos. Os rapazes ficavam até mais tarde. Alguns dormitavam nos escanos, embrulhados em capas alentejanas, e o taberneiro deixava-lhes a porta aberta. Outros jogavam a dinheiro, batendo as cartas na mesa, fazendo questão de pagar a rodada quando perdiam, para que ninguém os julgasse mesquinhos ou avarentos. Inventavam apostas absurdas. "Aquele que perder vai daqui ao Cabeço com um saco de batatas às costas." Eram quatro horas de caminho de monte, a subir e a descer, os sessenta quilos do saco meia carga de uma besta. "Quem perder faz uma declaração de amor à irmã do padre!" Caíam de riso. A Mariazinha era velha, desdentada e simples de espírito, quando lhe davam os ataques saía para a rua a dançar, dizendo que estava noiva de Cristo.

Uma vez tinham apostado com o Teodoro dez litros de vinho em como ele não seria capaz de entrar no cemitério à meia-noite.

- Não sou? Quem diz que não sou?

- Não és. Borras-te de medo.

- Não sou? Eu? Aposto vinte litros!

- Trinta!

- E eu um barril de cinquenta!

Apertaram-se as mãos a firmar o trato e depositaram o dinheiro do vinho com o taberneiro. Depois alguém se lembrou de dizer que não valia uma noite qualquer, só se fizesse bem escuro.

Teodoro encolheu os ombros, desinteressado e valentão. Escolhessem. Pouco lhe importava.

- Até pode ser sexta-feira e dia treze - acrescentou a rir.

             

Na noite combinada, enquanto alguns lhe faziam companhia na taberna, à espera da hora, os outros tinham arranjado uma abóbora do tamanho de uma cabeça. Esvaziaram-lhe o miolo, recortaram-lhe dois olhos, uma boca, espetaram-na numa cruz e cobriram a cruz com um lençol. Aquilo já de si tinha um ar sinistro, mas quando colocaram uma vela acesa dentro da "cabeça" e a levaram para o cemitério, eles próprios sentiram calafrios e deitaram a correr.

O taberneiro tirou o relógio do bolso do colete:

- Faltam cinco.

- Então vou indo.

- Não é só entrar e sair, hein? Tens de lá ficar um bocado.

- Pois sim.

Mas nem tempo teve de passar a porta. O regedor vinha a entrar acompanhado do cabo-de-ordens, que trazia ao ombro a cruz com a abóbora e o lençol.

Pôs-se a encará-los um por um, em silêncio, eles de olhos baixos, o taberneiro ocupado a lavar os copos. Olhou-os outra vez, a ver se alguém se atrevia a disputar-lhe a autoridade. E depois, furioso, sacudindo os braços:

- Com os mortos não se brinca! Comigo não se brinca! O primeiro que apanho a fazer gracinhas no cemitério atiro com ele p'rá cadeia!

E esquecido do cabo-de-ordens, que continuava a segurar a avantesma, deu uma reviravolta brusca, fazendo tremeluzir a chama das candeias.

Juntaram-se a discutir a sem-razão do despropósito. Parecia o Salazar. Só ele é que mandava, sempre a meter medo, a ameaçar com a Guarda. Se continuasse assim, ainda um dia era capaz de lhe acontecer alguma. Porque não estava certo. Um regedor fazia cumprir os editais, passava certidões e atestados, escrevia os assentos, não tinha que se meter nas brincadeiras da rapaziada. Era ou não era? Além disso o cemitério pertencia a todos e para respeito aos mortos não precisavam das lições dele. Das de ninguém.

O taberneiro quis devolver o dinheiro da aposta, mas disseram-lhe que o guardasse. Ficava para outra altura. O regedor podia julgar que mandava ou metia medo, mas o que ele não sabia era que se eles quisessem, se quisessem mesmo, hein?...

Desataram às gargalhadas, trocando olhares entendidos. Depois, numa maluqueira, uma abraçado à abóbora, onde a vela ainda ardia, outro com a cruz às costas, um terceiro embrulhado no lençol, e os mais aos uivos, às patadas, aos saltos, armaram ali uma dança, até que por fim o taberneiro os mandou parar, por causa dos vizinhos.

Veio uma última rodada, bebida de um golo porque se fazia tarde, e os homens foram-se despedindo. Os rapazes ficaram mais um pouco, como sempre, falando baixo, a aquecer-se ao resto do lume.

 

Como então não havia estrada nem telefone, os que tinham ido a cavalo buscar a Guarda e o médico só voltaram com eles ao fim da tarde. O choro e os gritos redobraram, ecoavam longe deformados pelo vento, e as pessoas, desorientadas, passavam sem levantar os olhos, mortificadas de que na aldeia pudesse acontecer uma desgraça assim.

Nessa manhã, ao entrarmos na escola, a professora tinha-nos mandado ficar em pé e rezar em voz alta um Padre-Nosso e três Avés. Depois, com mau modo, disse que não havia lição. Fôssemos ver. Servia-nos de exemplo e talvez aprendêssemos a respeitar as coisas sagradas.

 

A gente enchera o cemitério, a família perto dos mortos, os outros mais retirados a carpir e a chorar. O Teodoro, cara arroxeada, a língua de fora e a capa enrodilhada nas pernas, estava caído de lado sobre a campa do senhor Nunes, falecido dois meses antes, em Novembro. O Daniel, também roxo, de barriga para o ar, morrera agarrado ao companheiro.

Ficámos ali aterrados, sem compreender, fascinados com a realidade da morte, lembro-me de ter achado estranho que a professora considerasse aquilo um exemplo. Depois, quando o médico se agachou para examinar os cadáveres, os guardas mandaram sair toda a gente e não vimos mais nada. O enterro de ambos foi no dia seguinte.

 

A história começou então a ser contada aos serões, cada vez mais horrível, a ponto que ao fim de um mês havia quem fosse capaz de jurar em tribunal ter visto o senhor Nunes levantar-se da campa vestido de preto e, com a bengala, acertar no Teodoro uma bordoada fatal. Aos que duvidavam, dizendo que ninguém tinha visto sinal de bordoada nenhuma, as testemunhas respondiam que era sabido, pancadas de fantasma matavam sem deixar rasto.

Na versão de minha avó a participação do sobrenatural era mais modesta e os detalhes ouvira-os ela à cunhada do irmão do taberneiro. Mais coisa menos coisa, era o mesmo que o sargento Cardoso, fechado na secretaria do quartel, para que ninguém o incomodasse, tinha escrito nas cinco folhas do auto.

 

- Com os espíritos... pelo sinal da santa cruz... não se brinca... livre-nos Deus Nosso Senhor dos nossos inimigos... porque os mistérios... - a avó conversava ao mesmo tempo que se benzia e continuava o terço, a família sentada em volta da braseira, eu agarrado aos joelhos por causa do tremelique.

 

O taberneiro não fora capaz de se lembrar exactamente da hora, mas era mais tarde do que de costume quando os rapazes saíram para a rua e ele apagou o lume e trancou a porta. Fazia frio, sim senhor. E muito escuro. Não senhor, não tinha visto nada, já estava deitado quando o Zé da Zeferina, espavorido, lhe foi pedir que acudisse. Enfiou as calças e vestiu a samarra, pegou na caçadeira, mas o rapaz pediu-lhe que a não levasse, já chegava de desgraças.

- Pai nosso que estais no céu... Tira o gato daí. O da Zeferina ninguém o torna a ver... Santificado seja o vosso nome... Meter-se ao monte por uma noite daquelas... Venha a nós... Lá dormeceu nalgum buraco e os lobos... Venha a nós... Pára com o tremelique, rapaz!... Venha a nós o vosso reino...

Ao entrar no cemitério o taberneiro teve de ir às apalpadel­as como um cego. Só depois é que distinguiu os vultos e nesse momento o rapaz quis escapar, mas ele agarrou-o e fê-lo ir adiante.

- Não me obrigue, ti Teixeira! Olhe que morro! Olhe que morremos ambos! Os espíritos não nos deixam sair daqui!

Mandou-lhe uma punhada para que acalmasse e o Zé foi-se abaixo, a chorar como uma criança. Mas por mais que lhe falasse e o envergonhasse - "Sempre me saíste um maricas!" - força nenhuma o obrigaria a mais um passo. Nem para trás, nem para diante, pregado ao chão.

O taberneiro não lhe largava o braço e por um instante desconfiou que poderia ser peça que lhe queriam pregar, aquele a fingir que tremia e que chorava, os dois marmanjos deitados em cima da campa do Nunes, os outros com certeza a gozarem a cena escondidos nalgum canto. E então zangou-se. Que dissesse já o que era aquilo, porque não estava para graças. Ao mesmo tempo apertou-lhe o pescoço dum jeito que o rapaz caiu de joelhos, certamente lembrado que o taberneiro tinha fama de mau e numa feira quebrara a pontapé as costelas de um carteirista.

 

Ele, o Teodoro e o Daniel, tinham caminhado juntos para casa, ainda a falar da aposta e do regedor. Não sabia como tinha sido, mas o Daniel, assim sem mais nem menos, disse que dava cem mil réis ao que fosse homem de àquela hora entrar sozinho no cemitério.

- Cem mil réis? Eu por cinquenta entro lá e ainda por cima espeto um pau numa campa! - ofereceu o Teodoro.

- Não espetas.

- Ó se espeto!

Aquilo tinha sido só por falar, basófia, não esperavam que ele de repente parasse, teimoso e meio bêbedo, a dizer que queria o dinheiro ali já. Iam ver se era o regedor quem mandava, ou se ele não fazia o que muito bem entendia e quando entendia.

- Da cá a nota. Quem não quer não aposta.

 

À porta do ferrador encontraram um fueiro e, ajudando-se uns aos outros, saltaram o muro do cemitério, indecisos para que lado ir.

- Qual campa?

- Escolhe tu. Qualquer me serve.

Daniel escolheu a do senhor Nunes, porque a terra ainda não tinha endurecido e o Teodoro, curvado para fazer mais força, encheu o peito de ar e espetou o fueiro até meio.

- Aí está! Quereis mais fundo?

Antes de poderem responder ouviram o som oco do fueiro contra o caixão.

- Vinde ver.

Os outros recuaram apavorados e então aconteceu:  Teodoro quis-se endireitar, mas não foi capaz, estava preso à campa e desatou numa aflição:

- Acudi! Tirai-me daqui! Tirai-me daqui!

Os gritos não lhe saíam da boca, parecia que vinham do fundo da cova, e o Zé viu então uma mão branca aparecer no meio deles, ao mesmo tempo que o Teodoro caía redondo, agarrado ao Daniel, ficando ambos a estrebuchar.

O taberneiro tinha escutado em silêncio, abanando a cabeça, e abaixou-se para tocar nos corpos, não para se certificar que estavam mortos, antes num gesto de pena, duas vidas acabadas assim, uns rapazes pimpões, cheios de alegria. Foi nesse momento que o Zé da Zeferina dum salto desapareceu no escuro e nunca ninguém o tornou a ver.

 

O tenente apagou o cigarro no cinzeiro e com um gesto fatigado esfregou os olhos. Tinha acabado de ler. Depois, lentamente, escolheu um lápis vermelho e começou a pôr um traço aqui, outro ali, até que numa irritação súbita riscou as páginas todas, entregando-as ao sargento que continuava em sentido do outro lado da mesa:

- Isto está uma merda, Cardoso! Cheio de erros! Eu não posso mandar um auto destes ao nosso comandante! O rapaz não viu uma mão branca! Julgou que viu, Cardoso!

- Sim senhor, meu tenente.

- E você esqueceu-se de mencionar as circunstâncias do falecimento.

- Estão aí, meu tenente. O doutor...

- Onde? Não está nada! O doutor disse que foram ataques do coração. Correcto.

- Foi isso que escrevi, meu tenente.

- Mas as circunstâncias, Cardoso! Não falo das causas!

- As circunstâncias... Ora as circunstâncias...

- Precisamente. É isso que falta. Quando o rapaz se debruçou para espetar o fueiro na campa espetou também a própria capa, ficou preso a ela e agarrou-se ao outro. Morreram ambos de susto, porque estava escuro. Numa noite de lua viam logo do que se tratava.

- Sim senhor, meu tenente.

- Escreva tudo outra vez. E com menos erros.