Na minha infância o
sobrenatural ainda existia e amedrontava. Ocorriam aparições. Os jornais
relatavam milagres, publicavam o retrato de faquires enterrados vivos durante
trinta e seis dias, e estigmatizados que
sabiam a data do fim do mundo. Nesse tempo o Diabo mortificava os que com ele
tinham pactuado, e a água de certas fontes curava a cegueira, o reumatismo,
limpava o sangue - se bebida em jejum - corrigia os adúlteros.
Havia vizinhos que
tinham sido salvos de despenhadeiros por anjos de faces radiantes. Na
escuridão de algumas noites ressoavam os gritos das almas penadas, tão
dolorosos e cheios de mistério que levavam os cães a uivar e as pessoas a
benzer-se. Apareciam no céu clarões vermelhos que, diziam os anciãos,
prenunciavam as labaredas do inferno.
O mundo era maior do
que hoje. Na África, no Pólo Norte e junto das crateras dos vulcões, havia
monstros que comiam gente. A professora assustava-nos sem querer, dizendo que
na China viviam 400 milhões de chineses, esfomeados e rabiosos - ele escrevia
um 4 e enchia o resto do quadro com zeros - se o globo terrestre parasse de
rodar ou mudasse de inclinação - "Mesmo só um poucochinho, um décimo de
grau!" - cairíamos todos para cima!
Longe de tudo, ligada
ao mundo por um caminho estreito e acidentado, perdida numa serra onde só
raramente se aventuravam os tendeiros e os pedintes, a aldeia era desolada.
Sobretudo no Inverno, quando escurecia cedo e as noites pareciam infindas. As
mulheres e as crianças ficavam ao serão, os homens iam para a taberna jogar,
emborrachavam-se lentamente, aquecidos pela lareira e pelo vinho, excitados
pelas histórias dos medos antigos, falando dos negócios fabulosos com que os
ciganos enriqueciam.
Alguns recordavam os
anos da tropa, o temor de embarcarem pela primeira vez no comboio - que
realmente ia mais depressa do que um cavalo a galope. E falavam da caça, das
colheitas, das feiras de ano, da doença que podia matar as cabras.
Ao tocar das
trindades bebiam mais um copo, davam as boas-noites e saíam aos bordos,
ouvia-se na calçada o eco dos passos incertos. Os rapazes ficavam até mais
tarde. Alguns dormitavam nos escanos, embrulhados em capas alentejanas, e o
taberneiro deixava-lhes a porta aberta. Outros jogavam a dinheiro, batendo as
cartas na mesa, fazendo questão de pagar a rodada quando perdiam, para que
ninguém os julgasse mesquinhos ou avarentos. Inventavam apostas absurdas.
"Aquele que perder vai daqui ao Cabeço com um saco de batatas às
costas." Eram quatro horas de caminho de monte, a subir e a descer, os
sessenta quilos do saco meia carga de uma besta. "Quem perder faz uma
declaração de amor à irmã do padre!" Caíam de riso. A Mariazinha era
velha, desdentada e simples de espírito, quando lhe davam os ataques saía para
a rua a dançar, dizendo que estava noiva de Cristo.
Uma vez tinham
apostado com o Teodoro dez litros de vinho em como ele não seria capaz de
entrar no cemitério à meia-noite.
- Não sou? Quem diz
que não sou?
- Não és. Borras-te
de medo.
- Não sou? Eu? Aposto
vinte litros!
- Trinta!
- E eu um barril de
cinquenta!
Apertaram-se as mãos
a firmar o trato e depositaram o dinheiro do vinho com o taberneiro. Depois
alguém se lembrou de dizer que não valia uma noite qualquer, só se fizesse bem
escuro.
Teodoro encolheu os
ombros, desinteressado e valentão. Escolhessem. Pouco lhe importava.
- Até pode ser
sexta-feira e dia treze - acrescentou a rir.
Na noite combinada,
enquanto alguns lhe faziam companhia na taberna, à espera da hora, os outros
tinham arranjado uma abóbora do tamanho de uma cabeça. Esvaziaram-lhe o miolo,
recortaram-lhe dois olhos, uma boca, espetaram-na numa cruz e cobriram a cruz com
um lençol. Aquilo já de si tinha um ar sinistro, mas quando colocaram uma vela
acesa dentro da "cabeça" e a levaram para o cemitério, eles próprios
sentiram calafrios e deitaram a correr.
O taberneiro tirou o
relógio do bolso do colete:
- Faltam cinco.
- Então vou indo.
- Não é só entrar e
sair, hein? Tens de lá ficar um bocado.
- Pois sim.
Mas nem tempo teve de
passar a porta. O regedor vinha a entrar acompanhado do cabo-de-ordens, que
trazia ao ombro a cruz com a abóbora e o lençol.
Pôs-se a encará-los
um por um, em silêncio, eles de olhos baixos, o taberneiro ocupado a lavar os
copos. Olhou-os outra vez, a ver se alguém se atrevia a disputar-lhe a
autoridade. E depois, furioso, sacudindo os braços:
- Com os mortos não
se brinca! Comigo não se brinca! O primeiro que apanho a fazer gracinhas no
cemitério atiro com ele p'rá cadeia!
E esquecido do
cabo-de-ordens, que continuava a segurar a avantesma, deu uma reviravolta
brusca, fazendo tremeluzir a chama das candeias.
Juntaram-se a
discutir a sem-razão do despropósito. Parecia o Salazar. Só ele é que mandava,
sempre a meter medo, a ameaçar com a Guarda. Se continuasse assim, ainda um dia
era capaz de lhe acontecer alguma. Porque não estava certo. Um regedor fazia
cumprir os editais, passava certidões e atestados, escrevia os assentos, não
tinha que se meter nas brincadeiras da rapaziada. Era ou não era? Além disso o
cemitério pertencia a todos e para respeito aos mortos não precisavam das
lições dele. Das de ninguém.
O taberneiro quis
devolver o dinheiro da aposta, mas disseram-lhe que o guardasse. Ficava para
outra altura. O regedor podia julgar que mandava ou metia medo, mas o que ele
não sabia era que se eles quisessem, se quisessem mesmo, hein?...
Desataram às
gargalhadas, trocando olhares entendidos. Depois, numa maluqueira, uma abraçado
à abóbora, onde a vela ainda ardia, outro com a cruz às costas, um terceiro
embrulhado no lençol, e os mais aos uivos, às patadas, aos saltos, armaram ali
uma dança, até que por fim o taberneiro os mandou parar, por causa dos
vizinhos.
Veio uma última
rodada, bebida de um golo porque se fazia tarde, e os homens foram-se
despedindo. Os rapazes ficaram mais um pouco, como sempre, falando baixo, a
aquecer-se ao resto do lume.
Como então não havia
estrada nem telefone, os que tinham ido a cavalo buscar a Guarda e o médico só
voltaram com eles ao fim da tarde. O choro e os gritos redobraram, ecoavam
longe deformados pelo vento, e as pessoas, desorientadas, passavam sem levantar
os olhos, mortificadas de que na aldeia pudesse acontecer uma desgraça assim.
Nessa manhã, ao
entrarmos na escola, a professora tinha-nos mandado ficar em pé e rezar em voz
alta um Padre-Nosso e três Avés. Depois, com mau modo, disse que não havia
lição. Fôssemos ver. Servia-nos de exemplo e talvez aprendêssemos a respeitar
as coisas sagradas.
A gente enchera o
cemitério, a família perto dos mortos, os outros mais retirados a carpir e a
chorar. O Teodoro, cara arroxeada, a língua de fora e a capa enrodilhada nas
pernas, estava caído de lado sobre a campa do senhor Nunes, falecido dois meses
antes, em Novembro. O Daniel, também roxo, de barriga para o ar, morrera
agarrado ao companheiro.
Ficámos ali
aterrados, sem compreender, fascinados com a realidade da morte, lembro-me de
ter achado estranho que a professora considerasse aquilo um exemplo. Depois,
quando o médico se agachou para examinar os cadáveres, os guardas mandaram sair
toda a gente e não vimos mais nada. O enterro de ambos foi no dia seguinte.
A história começou
então a ser contada aos serões, cada vez mais horrível, a ponto que ao fim de
um mês havia quem fosse capaz de jurar em tribunal ter visto o senhor Nunes
levantar-se da campa vestido de preto e, com a bengala, acertar no Teodoro uma
bordoada fatal. Aos que duvidavam, dizendo que ninguém tinha visto sinal de
bordoada nenhuma, as testemunhas respondiam que era sabido, pancadas de
fantasma matavam sem deixar rasto.
Na versão de minha
avó a participação do sobrenatural era mais modesta e os detalhes ouvira-os ela
à cunhada do irmão do taberneiro. Mais coisa menos coisa, era o mesmo que o
sargento Cardoso, fechado na secretaria do quartel, para que ninguém o incomodasse,
tinha escrito nas cinco folhas do auto.
- Com os espíritos...
pelo sinal da santa cruz... não se brinca... livre-nos Deus Nosso Senhor dos
nossos inimigos... porque os mistérios... - a avó conversava ao mesmo tempo que
se benzia e continuava o terço, a família sentada em volta da braseira, eu agarrado
aos joelhos por causa do tremelique.
O taberneiro não fora
capaz de se lembrar exactamente da hora, mas era mais tarde do que de costume
quando os rapazes saíram para a rua e ele apagou o lume e trancou a porta.
Fazia frio, sim senhor. E muito escuro. Não senhor, não tinha visto nada, já estava
deitado quando o Zé da Zeferina, espavorido, lhe foi pedir que acudisse. Enfiou
as calças e vestiu a samarra, pegou na caçadeira, mas o rapaz pediu-lhe que a
não levasse, já chegava de desgraças.
- Pai nosso que
estais no céu... Tira o gato daí. O da Zeferina ninguém o torna a ver...
Santificado seja o vosso nome... Meter-se ao monte por uma noite daquelas...
Venha a nós... Lá dormeceu nalgum buraco e os lobos... Venha a nós... Pára com
o tremelique, rapaz!... Venha a nós o vosso reino...
Ao entrar no
cemitério o taberneiro teve de ir às apalpadelas como um cego. Só depois é que
distinguiu os vultos e nesse momento o rapaz quis escapar, mas ele agarrou-o e
fê-lo ir adiante.
- Não me obrigue, ti
Teixeira! Olhe que morro! Olhe que morremos ambos! Os espíritos não nos deixam
sair daqui!
Mandou-lhe uma
punhada para que acalmasse e o Zé foi-se abaixo, a chorar como uma criança. Mas
por mais que lhe falasse e o envergonhasse - "Sempre me saíste um
maricas!" - força nenhuma o obrigaria a mais um passo. Nem para trás, nem
para diante, pregado ao chão.
O taberneiro não lhe
largava o braço e por um instante desconfiou que poderia ser peça que lhe
queriam pregar, aquele a fingir que tremia e que chorava, os dois marmanjos
deitados em cima da campa do Nunes, os outros com certeza a gozarem a cena
escondidos nalgum canto. E então zangou-se. Que dissesse já o que era aquilo,
porque não estava para graças. Ao mesmo tempo apertou-lhe o pescoço dum jeito
que o rapaz caiu de joelhos, certamente lembrado que o taberneiro tinha fama de
mau e numa feira quebrara a pontapé as costelas de um carteirista.
Ele, o Teodoro e o
Daniel, tinham caminhado juntos para casa, ainda a falar da aposta e do
regedor. Não sabia como tinha sido, mas o Daniel, assim sem mais nem menos,
disse que dava cem mil réis ao que fosse homem de àquela hora entrar sozinho no
cemitério.
- Cem mil réis? Eu
por cinquenta entro lá e ainda por cima espeto um pau numa campa! - ofereceu o
Teodoro.
- Não espetas.
- Ó se espeto!
Aquilo tinha sido só
por falar, basófia, não esperavam que ele de repente parasse, teimoso e meio
bêbedo, a dizer que queria o dinheiro ali já. Iam ver se era o regedor quem
mandava, ou se ele não fazia o que muito bem entendia e quando entendia.
- Da cá a nota. Quem
não quer não aposta.
À porta do ferrador
encontraram um fueiro e, ajudando-se uns aos outros, saltaram o muro do
cemitério, indecisos para que lado ir.
- Qual campa?
- Escolhe tu.
Qualquer me serve.
Daniel escolheu a do
senhor Nunes, porque a terra ainda não tinha endurecido e o Teodoro, curvado
para fazer mais força, encheu o peito de ar e espetou o fueiro até meio.
- Aí está! Quereis
mais fundo?
Antes de poderem
responder ouviram o som oco do fueiro contra o caixão.
- Vinde ver.
Os outros recuaram
apavorados e então aconteceu: Teodoro
quis-se endireitar, mas não foi capaz, estava preso à campa e desatou numa
aflição:
- Acudi! Tirai-me
daqui! Tirai-me daqui!
Os gritos não lhe
saíam da boca, parecia que vinham do fundo da cova, e o Zé viu então uma mão
branca aparecer no meio deles, ao mesmo tempo que o Teodoro caía redondo,
agarrado ao Daniel, ficando ambos a estrebuchar.
O taberneiro tinha
escutado em silêncio, abanando a cabeça, e abaixou-se para tocar nos corpos,
não para se certificar que estavam mortos, antes num gesto de pena, duas vidas
acabadas assim, uns rapazes pimpões, cheios de alegria. Foi nesse momento que o
Zé da Zeferina dum salto desapareceu no escuro e nunca ninguém o tornou a ver.
O tenente apagou o
cigarro no cinzeiro e com um gesto fatigado esfregou os olhos. Tinha acabado de
ler. Depois, lentamente, escolheu um lápis vermelho e começou a pôr um traço
aqui, outro ali, até que numa irritação súbita riscou as páginas todas, entregando-as
ao sargento que continuava em sentido do outro lado da mesa:
- Isto está uma
merda, Cardoso! Cheio de erros! Eu não posso mandar um auto destes ao nosso
comandante! O rapaz não viu uma mão branca! Julgou que viu, Cardoso!
- Sim senhor, meu
tenente.
- E você esqueceu-se
de mencionar as circunstâncias do falecimento.
- Estão aí, meu
tenente. O doutor...
- Onde? Não está
nada! O doutor disse que foram ataques do coração. Correcto.
- Foi isso que
escrevi, meu tenente.
- Mas as
circunstâncias, Cardoso! Não falo das causas!
- As
circunstâncias... Ora as circunstâncias...
- Precisamente. É
isso que falta. Quando o rapaz se debruçou para espetar o fueiro na campa
espetou também a própria capa, ficou preso a ela e agarrou-se ao outro.
Morreram ambos de susto, porque estava escuro. Numa noite de lua viam logo do
que se tratava.
- Sim senhor, meu
tenente.
- Escreva tudo outra vez. E com menos
erros.