quarta-feira, fevereiro 1

Um amor em Sevilha

 

Ele sabia contar. De costas para a janela do pequeno apartamento de Paris onde então vivia, um braço na mesa, as pernas a descansar num banco, fazia reviver naquele interior soturno, onde a luz ficava acesa o dia inteiro, o tumulto de Madrid nos anos antes da Guerra Civil.

- Não me diga! Unamuno?

- Don Miguel, pois claro! - E vinham as anedotas, os bons ditos, comezainas, passeatas, as horas de tertúlia no Ateneo. Os personagens postos ali diante de mim, mais que vivos: Baroja, Valle-Inclán, Lorca, Gómez de la Serna, Miró...

- O pintor?

- Não. O escritor. O irmão.

Incomparável, aquela maneira de reviver. A vivacidade emprestada aos diálogos, o mimetismo com que, ao reproduzir um gesto, deixava de ser ancião para retornar à pele do jovem que então tinha sido.

- Grande gente. Uma época extraordinária.

- Mas porque não escreve tudo isso?

Além de não dar resposta, nesses momentos ele nem sequer me encarava, certo que o tempo se encarregaria de me fazer avaliar a insensatez da proposta. De facto - mas isso vim a aprendê-lo muito mais tarde - quase só o que as biografias esquecem ou escondem vale a pena ser contado.

Quando nos despedíamos eu saía com a impressão de ter sido inconveniente como amigo, mal agradecido como confidente. Apenas numa ocasião me respondeu ele com um fatigado "Para quê? A quem é que estas coisas poderiam interessar?" e, antes de eu cair em pomposidade e cumprimentos, o seu encolher de ombros arrumou definitivamente a questão.

Mas não era apenas a extraordinária maneira de fazer reviver os personagens e as horas: a intimidade que ele tinha tido com os homens e os acontecimentos mais importantes desse tempo tornava a narrativa fascinante.

Os detalhes da sua vida não entram aqui, e dela só usarei o indispensável para esta história verdadeira.

Português do Minho exilado em Madrid, tinha casado com uma rapariga espanhola e havia poucos meses era pai quando rebentou a Guerra Civil. A combinação das ideias e das amizades levou-o a alinhar com os republicanos, logo encarregado de missões que o obrigavam com frequência a ausentar-se da família, cruzando a Espanha sob os disfarces mais variados, ora padre, vendedor ambu­lante, fotógrafo...

Um dia, tendo-se dado por médico, mostraram-lhe um soldado que apodrecia de gangrena num palheiro, e ao acordar do desmaio viu-se na prisão.

As suas recordações, temperadas pela experiência, levavam-no a pintar um quadro sóbrio da tragédia que fora a Guerra Civil, não esquecendo de apontar que tinha encontrado lealdade em ambos os campos; que torcionários, assassinos, os corruptos e os judas, não apareciam exclusivamente entre o inimigo. Pouco capaz de fanatismo, devera a sua sobrevivência mais ao acaso do que à capacidade de compreender as razões bizantinas que opunham os clãs, ou de penetrar motivações políticas que desafiavam o raciocínio. Em determinado momento tivera a cabeça posta a prémio pelos franquistas, os anarquistas, os comunistas de El Campesino e pelos nazis da Legião Condor. Duas vezes foi alvejado a tiro, escapando ileso, e quando numa terceira o deixaram por morto, a bala só lhe tinha trespassado o ombro.

Ao fugir em Janeiro de 39, vendo-se são e salvo do outro lado dos Pirinéus, ele, que desde menino esquecera o rezar, viu-se de joelhos a agradecer o milagre.

O que aqui interessa, porém, é o dia de Primavera de 1937 em que chega a Sevilha sob nome falso, tendo por ordem hospedar-se em determinado hotel e aguardar que lhe entreguem aí informações sobre as tropas de Franco.

À medida que o tempo ia passando sem o mensageiro aparecer, ele, já cansado das belezas da Giralda, do bulício das ruas e da incerteza da sua missão, deixava-se ficar pelo hotel, comendo  tapas no bar, indo tarde e más horas para a cama, hesitando se não seria mais sensato regressar a Madrid e à família.

Mau grado a riqueza de detalhes com que em geral acompanhava as recordações, neste caso particular a sua narração era sóbria e breve, quase como se, tantos anos depois, ainda lhe fosse doloroso pôr no retrato mais que o estritamente essencial. E assim, da mulher que uma tarde entrou no bar e se sentou junto dele -  "Visivelmente rapariga da vida. Simpática." - nunca sabe­remos mais: nem a idade, o porte, nada do seu rosto.

Talvez devido às circunstâncias, ou ao perigo que os rodeava - a cidade não tardaria a revoltar-se a favor dos nacionalistas e vivia-se um ambiente de catástrofe - estalou entre aquele rapaz de vinte e seis anos e a mulher incógnita uma paixão única, tão devoradora que, dentro de dias, a ele pouco sobrava do sentido da realidade.

Todos os desejos da carne se lhe realizavam, mesmo os nunca sonhados; nenhuma loucura parecia impossível; abria-se-lhe, repentina, uma vastidão insuspeita de felicidade e prazer. E o passado: amigos, família, trabalho, as horas de tertúlia, o pudor da esposa, tudo isso parecia extremamente monótono e desagradá­vel, um planeta longínquo. A guerra? Que lhe interessava a guerra?

Por hábito, mais do que por interesse, tinha perguntado de vez em quando se havia algum recado, uma mensagem, mas ele próprio era o primeiro a estranhar a diligência. E se o porteiro, ao vê-lo, sussurrava que ainda não aparecera ninguém, dava-lhe precipitadamente a gorjeta, como para fazê-lo calar.

Noites que não iria esquecer, horas loucas, momentos em que o mundo em redor parecia habitado por gente cuja existência somente se justificava porque serviam de figurantes no teatro da sua paixão. O prazer deixara de ser repetitivo, para se tornar um crescendo cujos limites se dilatavam em permanência, cada vez mais longínquos, cada vez mais fundos.

Era felicidade demasiada para que, mais tarde ou mais cedo, o remorso não aparecesse a incomodá-lo e, recordado dos princípios em que tinha sido criado, sentou-se a escrever à mulher a carta fatal.

Tinha-a discutido longamente com a amiga e delineado um plano. O melhor, não fosse acontecer algum contratempo, era proceder já. Ela, todavia, sem o contrariar ou contradizer, não tinha mostrado entusiasmo nem pressa. E não era preciso que casassem, disse. Então não eram felizes como estavam? Sim, claro, ele teria que sair do hotel, alugavam casa, porque a dela era pequenina e barulhenta.

Rasgou a primeira versão da carta, demasiado seca. Rasgou também a segunda, porque lhe pareceu patética. As que se seguiram nem as chegou a terminar e só na tarde do dia seguinte, finalmen­te, conseguiu explicar o acontecido em duas páginas. Pedindo desculpa do passo informava a mulher para que preparasse o divórcio com um advogado. Por parte dele não haveria qualquer obstáculo. Cedia-lhe tudo (fizesse o favor de lhe remeter os seus livros, quando tivesse ocasião) e desejava-lhe muitas felicida­des. Beijos ao menino.

Sentiu-se aliviado de um peso, mas nessa noite tornou a relê-la, acrescentando em post-scriptum que agradecia uma resposta urgente.

No dia seguinte leu-a à amiga, estranhando que ela parecesse comover-se.

- Achas que não está bem?

Não era isso. Achava até muito bem, era uma carta linda. Mas dava-lhe tanta pena! Quantos anos tinha o menino?

Ele contou pelos dedos: - Dez meses.

Diante da esplanada onde se tinham sentado, formavam-se grupos em volta dos vendedores de jornais que apregoavam as últimas edições, gritando mais uma vitória de Franco, os massacres de Andaluzia.

O envelope, ainda em branco, tinha-se-lhe amarfanhado no bolso e acenou ao empregado para que lhe trouxesse outro.

- E mais dois cafés.

- Será que o correio funciona? - perguntou à amiga.

Ela tinha a impressão que não, porque a cidade se achava praticamente cercada, mas o cunhado ia algumas vezes a Marchena, em segredo, e de lá certamente ainda havia correio para Madrid.

Escreveu o endereço, humedeceu a goma, fechou o sobrescrito vagarosamente, como se assim emprestasse solenidade ao acto, e ela guardou-o na bolsa, dizendo que à noite o entregaria ao cunhado.

- Ele é de confiança?

- Manolo? Claro que é de confiança! - ela ia abespinhar-se, mas nesse momento apareceu uma multidão a correr, alguns com armas, mal tiveram tempo de se abrigar no interior do café quando começou o tiroteio.

- São os vermelhos - explicou um cliente - e a Guardia Civil atrás deles.

- Quê? - perguntou o empregado de má cara.

O homem fez um gesto de apaziguamento e, meio de lado, encaminhou-se para o fundo da sala.

Já fazia escuro quando se arriscaram a sair para a rua, o céu avermelhado com o clarão dos incêndios das igrejas e da fábrica do marquês de Tena. De longe a longe ouviam-se tiros. Passava gente alvoroçada a gritar que Queipo de Llano tinha mandado metralhar o Governo Civil.

Separaram-se de madrugada, combinando que no dia seguinte se encontrariam às três. Não iriam procurar casa como tinham pensado, era melhor esperar que as coisas acalmassem. Se houvesse cinema iriam ver Scarface.

Um mês depois, ele preocupado com a possibilidade de ser traído e preso, ela arrebatada de entusiasmo pela vitória do que achava a causa mais justa, assistiram à entrada triunfal do Caudillo à frente dos mouros do Ejército de África.

Na sua paixão pouco ou nada tinha mudado. O arrebatamento era o do início, não lhes acontecera uma zanga, nem sequer a troca de palavras menos amigas que às vezes nasce da impaciência ou de um desacordo fútil.

Ele continuava no hotel, porque as casas que tinham visitado eram grandes demais e caras, ou então pardieiros, mas ela garantia que haviam de achar.

- É por causa da guerra. Mas o fim não tarda, vais ver. De­pois há aí casas à farta.

Contactos com os camaradas não voltara a procurar, resposta da mulher também não tinha vindo, a estadia em Sevilha parecia ter recebido um toque mágico, pois, ao contrário do seu carácter, sentia-se tomado de uma extrema lassitude. As tropas nacionalis­tas estavam às portas de Madrid, mas nem por um instante lhe pareceu que isso pudesse ter qualquer consequência para a mulher e o filho.

- Não lhes acontece nada, não achas?

A amiga concordou. Com certeza ia haver luta, mas os vermelhos não estavam em condições de aguentar. Além disso, às mulheres e às crianças ninguém faria mal.

Comiam, passeavam, amavam-se, o sol do Verão alongava as sestas, o calor da noite obrigava-os a ficar na rua até desoras. Tinham visto Scarface três vezes e no hotel já os consideravam um casal.

Até que uma manhã, acordando sozinho, teve a impressão que saía de uma embriaguez e, sobressaltado, acabou por se sentar na cama, abanando desesperadamente a cabeça.

Em que se tinha metido? Que feitiçaria o levara a passar quase dois meses no deboche, sem uma vez sequer se dar conta do que lhe acontecia? Era de garoto ingénuo, não era de homem! A história requentada e banal da paixão romântica pela prostituta!

Sim, evidentemente, tinham sido meses intensos, um fogo, mas não era para continuar, menos ainda para acabar ali a vida!

Sorriu à ideia de que ela lhe propusesse vir a ser o seu chulo. E arrepelava-se por não poder reparar a asneira da carta que tinha escrito à mulher. Divorciar-se! Acabar os seus dias em Sevilha, tomando café, passeando no Alcázar, talvez a ter de esperar, resignado, que ela voltasse dos clientes!

Quando se encontraram para o almoço, como de costume, ficou com a impressão que ela pressentia qualquer coisa, mas não teve coragem de falar. Nem no dia seguinte, um domingo - pela primeira vez depois de muito tempo voltara a haver tourada e não quisera  estragar-lhe a alegria. "Amanhã abro-me com ela". Mas só o conseguiu na quinta-feira, depois de alguns suspiros, aflito por não saber como começar.

Ela ouviu-o calmamente, sem interromper, sem a cena ou os gritos para que se tinha preparado. Séria, os olhos na mesa, garantiu-lhe que compreendia, sabia bem qual era o seu destino. A falar verdade não tinha acreditado que pudessem chegar a viver juntos. Pois ia agora ele, um senhor, amaziar-se com uma mulher da vida? Alguma vez se tinha visto isso? Nos livros, sim, nas fitas de cinema.

Foi ele que lhe segurou a mão, sentindo-se culpado e reles, tropeçando nas palavras para confessar o que no íntimo mais o preocupava: com certeza a mulher tinha tratado logo do divórcio, era bem possível que ao receber a carta, vendo-se abandonada, tivesse arranjado um amante. Afligia-o também não saber o que tinha acontecido ao menino.

- Não é a primeira vez, sabes? - disse ela, procurando qualquer coisa na bolsa.

Ele abriu o isqueiro para lhe dar lume, supondo que procuras­se os cigarros, e só então, com um sentimento indefinível onde se misturavam a vergonha, a mesquinhez, a inquietude e o remorso, reconheceu que ela lhe estendia o envelope da carta que nunca tinha mandado.

- Mas...!

Ela fechou a bolsa, levantou-se, tocou-lhe no ombro a impedir o movimento que ele fazia para se levantar também, e saiu para a rua.

 

                                                                      *  *  *

 

in Os Lindos Olhos da Júlia a Farmácia – Quetzal, 2011