domingo, fevereiro 12

Quem vai e quem fica


Vai em dois anos e dois meses que na aldeia não há funerais. Ao contrário do habitual, das cento e poucas almas que lá vivem nenhuma se diz doente ou queixa seja do que for, situação com o seu quê de irrealidade, pois os achaques, próprios, alheios, actuais ou não, sempre foram assunto favorito nas conversas.

O Abel, que seja qual for a situação será sempre contra, também agora foge à regra, não que invente doenças ou exagere se alguma dor sente, mas porque se promoveu a crítico severo dos conterrâneos, repetindo que nada adianta fingir que estão sãos como pêros, cá é que ninguém fica.

Na medida do possível passam de largo, mas se não podem escapar mantêm o afastamento do metro e meio, fazem de jeito a que a conversa não dure, nem tenham de lhe ouvir as ideias, aturar a vaidade de ser diferente, e senhor de conhecimentos complicados demais para as suas moleirinhas.

Há todavia uma outra razão para evitarem encontrá-lo, essa talvez mais forte ainda, e não venham dizer que são crendices, porque o não são. Além de ganhar a vida como electricista, acontece ser o Abel filho da falecida Marta, que trabalhou no lar da vila anos a fio, e pelo que constava sabia mais do que muita enfermeira.

Ninguém se arrisca a perguntar-lho, porque com aquele feitio é quase certo que quem se atrever leva má resposta. Dá-se o caso que a mãe, alma bondosa, tinha ganho fama por muitas vezes prever a morte de idosos que pareciam em boa saúde. Dizia ela, que se estavam a ficar com a pele fininha, as orelhas em ponta e o nariz aguçado, poderiam aguentar até ao começo da noite, mas não viam a madrugada.

Há quem ache que a Marta sabia aquilo por ter anos de experiência, mas são mais os convencidos de que ela “via” porque tinha o “poder”. “Poder” que bem pode ter passado ao filho, que quando os olha talvez “veja” quem vai e quem ainda fica.