quinta-feira, fevereiro 2

Matar os pais

 


Meu caro Thomas,

Claro que me não são desconhecidos os sonhos de me ver Todo-poderoso e acabar de uma vez para sempre com feriados, aniversários e solenidades. De, à semelhança de Deus,
poder liquidar impunemente os que me mortificam e reduzir ao estado de zombie os que me importunam. Ou, falhando tudo isso, ter os meios que permitem comprar uma ilha longínqua no Pacífico e lá, monarca absoluto rodeado de prazer e conforto, viver em dolce far niente.
As peripécias que me contas da tua Páscoa nas Ardennes justificariam de facto duas ou três mortes. Mas na verdade, e embora a Polícia e o Código Penal não possam evitar que se passe do desejo ao acto, a perspectiva de uma vida atrás de grades chega para que a maioria de nós se contente com fantasias. Além disso, devo dizer que na tua idade – vais fazer dezasseis? – não há nada de alarmante em querer liquidar os pais. Eu próprio comecei a «matá-los» quando tinha uns doze anos e, curiosamente, também por causa da Páscoa.
É certo que a Páscoa de então em pouco se pode comparar com a de hoje. Não havia, por exemplo, o hábito de nessa altura do ano ir de férias e, ao contrário de agora, o aspecto religioso certamente predominava sobre o profano.

Na Sexta-Feira Santa o interior das igrejas era um mar soturno de panos e paramentos roxos, o Sábado de Aleluia desordenava totalmente a vida doméstica com os preparativos das comezainas do domingo da Ressurreição. Recebia-se ainda a visita do pároco, que vinha para benzer as casas. Mal se ouvia a campainha do cortejo abria-se a porta, espalhava-se um tapete de verdura na soleira, a família esperava em semicírculo na sala. Enquanto o padre dizia a sua reza o sacristão retirava o óbolo, discretamente colocado numa salva sob um guardanapo e, dada a bênção, era de praxe que o sacerdote e os presentes comessem um petisco ou um doce e bebessem um copo de vinho fino.
Dessas cerimónias guardo a recordação de padres entornados e acólitos tão bêbados que, ao chegar a nossa casa, já vinham incapazes de segurar direito o crucifixo do Senhor. E algumas vezes aconteceu que, na pressa de beber, até o óbolo esqueciam, era eu que tinha de correr atrás deles com o dinheiro.
Mas a Páscoa era para mim, sobretudo, o tormento do fato novo. Por uma tradição cuja origem desconheço, o mês antes era o da visita ao alfaiate, um velho maricas que, nesse tempo sem pronto-a-vestir, lentamente me apalpava a anatomia sob o aceitável pretexto de tirar a medida. E que para o fato ficar bem exigia duas provas, por vezes mesmo uma terceira. Até que um dia, farto daquilo, gritei que não queria fato novo. Mas como um puto de doze anos tinha então me-
nos direitos que os escravos da antiga Roma, meu pai levou--me ao alfaiate à força, com a recomendação de que se abrisse a boca ele me cortava às fatias.

Claro que me poderia ter queixado, e então creio que do pobre alfaiate não ficaria um
osso inteiro. Foi assim que, levado pelo estranho instinto que em nós manda, preferi a solução visivelmente menos chocante, e pela primeira vez desejei a morte de meu pai.
Por isso te digo que não te perturbes, nem tenhas remorsos dos teus sentimentos. Desde a Grécia clássica e passando por Freud, por mim, por ti, e pelos muitos que hão-de vir, o viver é um encadeamento de «assassinatos» que felizmente se não cometem.

 

(in Mazagran – Quetzal, 2012)