sábado, outubro 15

Outras guerras

 

Na juventude tinha sido um modesto empregado de farmácia, mas quando o conheci o senhor Castro vivia fartamente dos rendimentos. Uns diziam que fora um golpe de sorte, mas ele mantinha que o ter ganho anos antes a taluda do Natal se devia apenas a uma fórmula secreta e ao rigor dos cálculos que nela empregara. Mas se era assim, replicavam os cépticos, porque não ganhava ele um prémio todas as semanas? Sempre lhe daria um lucro maior que o juro que recebia da Caixa e o aluguer dos prédios que comprara no nosso largo.

O senhor Castro sorria, como que a perdoar tanta ignorância, fazia estalar lentamente os dedos – um seu mau hábito – e explicava num tom severo que nem tudo era o que parecia. Havia mistérios. Coisas que se não podiam divulgar, pois o castigo que os poderes ocultos reservavam a quem lhes desobedecia excedia de longe aquilo que supúnhamos horrendo.

É ver esta guerra. Houve desobediência? Houve pecado? Zás! O sobrenatural não se fica em meias medidas. Atira logo um cataclismo, manda as pestes, os grandes incêndios. E para o saber não é preciso ser-se doutor, tudo isso se lê na Bíblia.

Estávamos em 1942, momento indeciso da Guerra Mundial, e na vizinhança o senhor Castro era reconhecido como homem de indiscutível autoridade. Não só por ter ganhado na lotaria com a sua fórmula, mas porque sabia explicar o andamento das hostilidades. Chegava ao café depois da ceia e colocava sobre a sua mesa o jornal, o mapa da Europa, o mapa da África do Norte, um lápis, uma folha de papel em branco. O empregado trazia-lhe a bica, com muito açúcar, e o cálice de bagaço que ele saboreava em pequenos goles, dando estalinhos de apreço com a língua. Nós, grandes e pequenos, ficávamos à espera.

Então? Ouviram?

A pergunta era ociosa, porque só ele tinha rádio, mas desse modo ficavam guardadas as aparências, ninguém precisava de se sentir menos que ele ou mais pobre. Em seguida desdobrava os mapas, erguia o lápis como uma batuta e olhava em redor a certificar-se da nossa atenção, fazendo um gesto para que nos aproximássemos.

 Uma noite, no noticiário das nove a BBC tinha anunciado que o Afrikakorps de Rommel estava em El-Alamein – «Aqui, quase ao pé de Alexandria» – mas na opinião do senhor Castro o general Montgomery não demoraria a desencadear uma ofensiva com o seu Oitavo Exército. E levantando o jornal para que todos víssemos o diagrama da disposição das tropas, fez com o dedo um movimento a acompanhar a orla marítima:

O Montgomery pode atacar por este lado, mas isso vai-lhe custar muitas baixas. Ou mete as tropas pelo deserto. O problema é que no deserto o Rommel está bem entricheirado e vai ser difícil tirá-lo de lá. Ora com as coisas neste ponto, estive a pensar que a melhor maneira de lançar o contra-ataque seria a seguinte…

Depois de alisar com a mão a folha de papel o senhor Castro desenhou nela, de forma grosseira mas reconhecível, o teatro de operações, retirou do bolso interior dois lápis de cor – «O azul para os ingleses. O vermelho são os alemães.» – e com incrível presteza desenhou uma vintena de flechas azuis, algumas recurvas, indicando movimentos, outras rectas, como dirigidas a um alvo.

A seguir desenhou outras tantas a vermelho, opondo-as às primeiras ou entrelaçando-as num jeito tão sugestivo que não era preciso muita imaginação para sentir ali forças enormes, prestes a enfrentar-se numa luta de vida ou de morte.

Indicando com gestos enérgicos os futuros movimentos da tropa e fazendo previsões apocalípticas, o senhor Castro tomava aos nossos olhos dimensões de verdadeiro Deus ex-machina, dono de segredos e profecias que era melhor não querer desvendar.

 As suas palavras eram contudo estranhamente confortantes: a guerra passava-se num deserto longínquo e além disso terminaria pela vitória dos bons e a derrota completa dos maus.

Hoje são essas certezas simples o que mais me falta: nenhum deserto é longínquo e não sou capaz de distinguir entre bons e maus, vencedores e vencidos.