quarta-feira, outubro 19

A guerra dos folhetos

 

O geral dos casais que envelhecem em relativa paz e harmonia, sabe que esse estado só se alcança na medida em que cada um dos cônjuges (palavra que soa bem nos processos de divórcio) feche os olhos aos humores do outro, lhe perdoe os hábitos e as idiossincrasias (outra palavras cara) que são motivo de atrito, e muitas vezes terminam em discórdia.

Conte-se então como o Abílio e a Filomena, ambos a entrar nos oitenta, actualmente vivem naquele estado a que nas guerras se chama “trégua de hostilidades”, um tempo em que se pára de combater e, em sinal de paz, se içam bandeiras brancas.

Entre o Abílio e a Filomena não é caso de guerra, antes daquelas guerrilhas em que se passa da discordância para a irritação, a desavença vai aumentando, e o silêncio mútuo “fala” mais alto do que os berros que dariam numa zanga corrente.

Como quase sempre, o desagrado começou por uma ninharia, neste caso o modo como ambos encaram aqueles folhetos de letra miudinha, que vêm nas embalagens dos medicamentos. Enquanto a Filomena nem sequer os olha, e às vezes os deita logo fora, o Abílio vai buscar a lupa que comprou para os poder ler, e nesse momento não o venham incomodar com perguntas ou interesse fingido.

No Verão apareceram-lhe umas borbulhas acastanhadas, e pelo sim pelo não foi ao médico, que o sossegou, com aquela pomada logo desapareciam.

Releu o folheto, procurou o significado de palavras esquisitas, como corticosteróides. Assustou-se com os efeitos secundários, e talvez por isso, dando rédea larga ao medo e à imaginação, recordou ter uma vez lido que o excesso de corticosteróides no sangue poderia ter como consequência a doença de Alzheimer.

Num segundo o seu mundo desabou, e foi má sorte a Filomena entrar, porque ao vê-lo transtornado não se conteve, disse-lhe que de tanto ler os papeluchos ainda dava em xexé.