quarta-feira, outubro 26

A 10.000 m

 

No avião a maioria dos passageiros é plebe excitada, barulhenta e já bêbeda. Estou sentado numa fila do meio. Aqui e ali um ou outro encolhe-se intimidado e, talvez também como eu, reza para que o martírio não dure mais que as quase três horas de voo.

Junto da janela, na fila defronte da minha, vai uma mulher de trinta e poucos anos e o filho, rapazola de treze ou catorze, hiperactivo, matulão na estatura, imbecil no modo.

A mãe fala Português, o rapaz é bilingue, e aos gritos chama o pai e o irmão, sentados na mesma fila, mas no extremo oposto.

     - Ó pai! Ó Víctor!

Não sei o que lhes mostra, mas o pai e o irmão acenam com grandes gestos que sim. Ele, de contente, atira-se contra a mãe, aperta-lhe as mamas e volta a gritar Ó pai! Ó Víkterr! Víkteerrrr!

Dança na coxia, aponta as mamas da mãe, soqueia-lhe a cara, os ombros, a barriga. Ela ri, finge que se defende, empurra-o, enquanto na outra ponta o pai o irmão batem palmas.

     - Força, Carrrllos! Força!

    Agarra-se de novo às mamas, apalpa a hospedeira que vai a passar, e quando esta irritada se   

    volta, estica a boca numa careta alarve.

    - Ó Víctor! Víkterrr! Ó pai!

Levanta-se, faz um manguito à hospedeira, e ao ver que alguns riem repete o gesto para trás, para diante, para os lados.

- Ó pai! Ó Víkter! Ó Víktrr! Olha!

Outro manguito urbi et orbi. Alguns passageiros parece que sorriem, mas é um arreganhar de dentes involuntário,  sintoma de alucinação. Mesmo os bêbedos começam a grunhir e a achar demasiado.

O rapaz deixou de gritar, só acena. Quer mais uma coca-cola. E mais uma. Tenta de novo apalpar a hospedeira, mas esta usa o tabuleiro como escudo e, com um modo discreto, sorridente, entala-lhe o braço contra o assento.

Paz e sossego! Adormeceu encostado à mãe, os dedos encafuados no decote.

O mar está calmo no Golfo da Biscaia. Ainda há neve nos Picos de Europa. Passamos sobre León e Trás-os-Montes, sobrevoamos o Porto. O avião vai aterrar, aterrou, a plebe grita vivas e bate palmas.

O rapaz acorda em sobressalto, levanta-se, olha em volta, dá ideia de que demora a saber onde está. Finalmente sorri e põe as mãos em megafone:

- Ó pai! Ó Víctor! Víkterrr!