quinta-feira, outubro 13

Napoleão




A maior parte do meu tempo de vida militar foi passada a carimbar e catalogar livros sobre Napoleão, que a Biblioteca do Estado-Maior do Exército tinha comprado ou recebido em dádiva, e se amontoavam em rimas num corredor. Mas logo nos primeiros dias me pareceu, e o chefe concordou, que apor o carimbo e preencher a ficha não bastava: para escrever o catálogo seria conveniente ler, ou pelo menos folhear, a obra em questão. Assim devo ter folheado e lido centenas, senão milhares de estudos, ensaios, análises históricas, bélicas, estratégicas e políticas, descrições detalhadas de amores imperiais, de batalhas, os relatos de como Bonaparte acabara em Santa Helena.

Nessa altura não prestei atenção, mas mais tarde ocorreu-me que Napoleão se entrelaçava curiosamente na minha vida. Antes de eu nascer o meu avô paterno recortara durante anos de O Primeiro de Janeiro, o seu jornal favorito, folhetins sobre a vida, os amores, as guerras e o fim do imperador. Atados e encadernados formavam vinte e dois volumes, tão grossos e pesados que eu precisava de ajuda para os pôr sobre a mesa. Esses li-os todos e, se bem que para mim nesse tempo em grande parte incompreensíveis, achei-os tão absorventes como os livros de Salgari.

Na idade em que os meus companheiros falavam de Jesse James, Yala a Vingadora, o Capitão Rob,  Sandokan o Tigre da Malásia, eu maravilhava-me com as façanhas dos marechais do Império e odiava em segredo Josefina, Fouché e Talleyrand, para mim fautores da desgraça do grande homem. Sir Hudson Lowe, seu carcereiro em Santa Helena, comparava-o eu no meu desdém de criança pelos ingleses que via sair dos escritórios das firmas de vinho do Porto: tesos e ridículos, sempre de chapéu de coco como se fosse Carnaval e de guarda-chuva enrolado, mesmo no pino do Verão.

Longe no passado, ambas essas fortuitas andanças do acaso tornaram-me um razoável conhecedor de Napoleão e da sua época. Mas hoje esse conhecimento acanha-me, porque me recorda o tempo em que eu tinha heróis e acreditava no extraordinário dos seus feitos; e simultaneamente torna-me melancólico, pois embora a História continue a ter tragédias, perdeu para sempre a grandeza.